Romance: Tentação da Serpente


Um olhar feminino sobre o Antigo Testamento.
Uma história de mulheres, para mulheres, de que os homens também gostam.

"Tentação da Serpente" é uma reedição de "O Romance da Bíblia", publicado em 2010.

18 maio 2010

Todos os defeitos e poucas virtudes

Entrevista por Teresa Horta a Deana Barroqueiro, no Diário de Notícias

Teresa Horta - Pretendeu dessacralizar o Antigo Testamento?

Deana Barroqueiro - Em parte sim. Tudo começou com uma investigação que estava a fazer para um dos meus livros históricos, a propósito da qual fui à Bíblia para reler a história da rainha de Sabá e do rei Salomão e, como não gosto de ficar a meio de nada, reli todo o Livro do Génese. Então, comecei a reparar na conotação erótica daquelas histórias e tive vontade de tentar esse lado da escrita, sem saber se conseguia fazer um conto erótico.

T.H. - Foi um desafio?

D. B. - Foi um desafio imenso! Um projecto que nunca supus ser capaz de levar até ao fim. Nem sequer tenho grande conhecimento da literatura erótica, para além daquela que todos conhecemos do tempo da juventude. No entanto, em dez noites escrevi seis contos, unidos pelo erotismo.

T.H. - Contos? Não será antes um texto único?

D. B. - É de facto um texto único, um romance. No fundo, esta colectânea é uma tentativa de recriar os ambientes da antiguidade pré-clássica, quer na Mesopotâmia quer no Egipto, através da mulher e do seu sacrifício ao longo dos tempos.

T.H. - Pretendeu captar o olhar que elas tinham sobre os homens do seu tempo?

D. B. - Sim. Neste livro mostro os patriarcas, os sacerdotes e os reis sob o ponto de vista das mulheres. Vou recriando a história da Bíblia, mas de uma maneira realista. Ou seja, sem ser através da história religiosa, mítica.

T.H. - O elemento de ligação entre os contos não será a mulher em vez do erotismo?

D. B. - É difícil separar uma do outro. Mas a ideia era ser o erotismo, pegar nesse filão, inseparável da mulher. Até hoje têm sido os homens a «fazer» o erotismo, focalizando-o nas mulheres, que por seu lado têm calado as sensações eróticas, o seu prazer. Parece até que há um certo medo...

T.H. - E também uma certa vergonha?

D. B. - É isso, uma certa vergonha. O que, em vez de deter-me, empurrou-me para a escrita deste livro.

T.H. - A confrontar o corpo profano com o corpo sagrado?

D. B. - Em certa medida, sim. Pretendi retirar tudo quanto era religioso, pegar no Antigo Testamento como se pegasse na Ilíada ou na Odisseia, tentando transformá-lo numa série de histórias do mundo real. Quis mostrar como é que viviam aqueles nómadas, como é que, sem ser por intervenção divina, se justificam determinadas coisas, tais como as velhas de noventa anos engravidarem e parirem crianças saudáveis, e os velhos de duzentos anos, terem uma sexualidade exuberante, rodeados por raparigas que lhes davam filhos.

T.H. - E as visões? Os sonhos proféticos?

D. B. - Tomei uns e outros como superstição ou ignorância, ou mesmo como «esperteza saloia», ou seja, o modo de as mulheres conseguirem alcançar aquilo que querem e que, de outro modo, não conseguiriam.

T.H. - Porque escolheu estas e não outras mulheres do Antigo Testamento?

D. B. - Talvez porque as suas histórias me revoltaram, ou me encantaram particularmente. E também porque, em certa medida, o seu estatuto mantém pontos em comum com o das mulheres dos nossos dias.

T.H. - Mulheres destruídas pelo poder divino?

D. B. - Eram usadas e destruídas, pura e simplesmente. Eram ignoradas, encaradas como objectos. Mas não creio ter sido o poder divino a aniquilá-las, antes a interpretação que os homens fazem do divino. Apesar de tudo eram mulheres fortes.

T.H. - Mulheres fortes ou invisíveis?


D. B. - Fortes e invisíveis! Mas, provavelmente, essa é uma projecção que faço. Sei apenas que tentei dar um retrato de certo modo realista, de como era a vida naquele tempo, de como seriam as mulheres de então.

T.H. - Seres a quem Deus nunca fala?

D. B. - Deus só fala às profetisas, com Débora. A verdade é que no Velho Testamento, de uma maneira geral, Deus não fala às mulheres. Nem sequer a Sara...

T.H. - Quando escreveu estas histórias, sentia-se uma cronista ou uma ficcionista?

D. B. - Procurei ser uma cronista. Gosto de escrever textos históricos, mesmo quando os transformo em aventuras.

T.H. - Neste caso, não há um olhar moderno, trocado por um olhar magoado?

D. B. - Só o leitor pode responder a essa pergunta. A única coisa que sei, é que sempre me afligiu a condição da mulher, em todos os tempos. Na época que refiro, eram meros objectos de troca, de venda. Continuam a sê-lo, em muitos lugares no mundo.

T.H. - Estes histórias foram imaginadas a partir da visão das mulheres?

D. B. - Nunca me demoro muito a imaginar uma história, a história conta-se-me, e é isso que me fascina na escrita. Contudo, tentei pôr-me na pele de cada uma dessas mulheres.

T.H. - Não põe em confronto o poderoso universo masculino com o universo intimista feminino?

D. B. - Ponho em quase todas as histórias. Referindo um certo poder ínvio, que as mulheres se vêem obrigadas a usar.

T.H. - Um poder sempre marginal?

D. B. - Sempre! E foi isso que pretendi denunciar, mostrando muita coisa que tem andado tapada.

T.H. - Tal como a pedofilia, tolerada no Antigo Testamento?

D. B. - Precisamente! Repare naqueles velhos todos, casados com crianças de nove, 11, 12 anos! Bem sei que, então, elas faziam-se mulheres mais cedo, mas mesmo assim, é revoltante! No Corão, Maomé, por exemplo, casa com uma miúda de seis anos e consuma o casamento quando ela tem nove, vem lá escrito!

T.H. - E também vem lá a mutilação sexual?

D. B. - Li vezes sem conta o Velho Testamento e não encontrei nenhuma mutilação sexual, embora nele as mulheres sejam maltratadas. Foi uma horrenda invenção ou interpretação posterior.

T.H. - Porque não escreveu sobre as mulheres do Novo Testamento?

D. B. - Preferi as mulheres do Antigo Testamento pela violência que pesa sobre elas. Por isso, eu não gosto nada do Antigo Testamento! Acho mesmo que é um livro de maus exemplos! Tem todos os defeitos e muito poucas virtudes.

Um olhar feminino do Antigo Testamento

Tentação da Serpente/O Romance da Bíblia possui o riso que acontece debaixo da palma da mão entreaberta sobre a boca, mas igualmente o desfrute do gozo, ambiguamente trocado, tomado, pelo gosto do outro, no tactear da língua. Um livro de memórias ancestrais, que nos mostra o despertar da mortal e venenosa serpente das seitas religiosas, do obscurantismo, do sexismo com a sua rancorosa face. Mas, Tentação da Serpente/O Romance da Bíblia é ainda a beleza trabalhada, cinzelada, com um bom gosto literário inusitado, eu diria mesmo raro, na ficção portuguesa. (…)

O livro de Deana Barroqueiro traz consigo a visão da mulher. Lúcido olhar, que ao longo dos séculos tem faltado à visitação deste universo da Bíblia: Velho Testamento moralista, repleto de anciãos preguiçosos, libidinosos e lascivos, de brutamontes ignorantes e violadores, convocados por um Deus irado frente à própria incompetência e à própria imagem, segundo a qual teria criado o homem, de quem afinal não gosta e castiga. E é precisamente no enredamento deste dilema, que se abrem as páginas do primeiro dos dezanove textos que, fragmentariamente, irão formar um todo literário uno: falando de Noé e de Jacob, de Isaac e de Sansão, de Asmodeu e dos circuncisos, de Labão e de Abraão, arrancando-os do seu pedestal de heróis divinos, com uma habilidosa crueldade implacável.

Maria Teresa Horta
Crítica literária

Aos meus leitores

O Romance da Bíblia é uma reedição revista, depurada e reorganizada, das minhas duas obras preferidas – os Contos Eróticos do Velho Testamento e os Novos Contos Eróticos do Velho Testamento –, publicadas em 2003/2004 e que, desde muito cedo, deixaram de estar acessíveis aos leitores. A Editora Ésquilo permitiu-me concretizar o desejo de revisitar e reformular essa minha saga das Mulheres do Antigo Testamento, dando-lhe a forma de um romance (implícita, todavia, na estrutura aparentemente fragmentária das duas colectâneas de contos).

A razão que me levou a escrever sobre um tema tão delicado, capaz de ferir ainda algumas susceptibilidades, em muitos quadrantes deste nosso mundo, foi talvez a percepção de que as lendas, parábolas e histórias exemplares do Antigo Testamento, com as sua personagens sacralizadas e, durante milénios, intocáveis, nunca tinham sido olhadas e escrutinadas do ponto de vista feminino e focando particularmente a condição da mulher. Era um desafio irresistível para uma amante de causas perdidas.
Reli os livros do Antigo Testamento de fio a pavio e senti, desde logo, uma vontade imensa de reescrever essas histórias, incarnando um cronista desse tempo, céptico porém capaz de aceitar com igual complacência as crenças em Baal, Osíris, Marduk ou Jahweh, interessado sobretudo em descrever os espaços geográficos, ambientais, sociais e étnicos.

Pesquisei e recolhi inúmeros testemunhos que chegaram até nós na escrita cuneiforme de Ur e de Ninive ou na hieroglífica do Egipto, dessacralizando os mitos e procurando uma explicação mais real e prosaica para os acontecimentos, de acordo com essa sociedade de pastores nómadas que formaram as tribos de Judá e Israel.
Pretendi – como já o disse outrora e tenho feito com os meus romances sobre o período dos Descobrimentos – recriar a vida desses homens e mulheres, forçosamente pouco cultos e muito supersticiosos, a lutarem ferozmente pelo seu lugar num mundo bárbaro de guerras e fomes, recorrendo a todos os meios que lhes sugeriam a esperteza e o engenho, para assegurarem a própria sobrevivência, mesmo se isso implicasse a destruição do seu próximo.

Além da pesquisa em obras de História da Antiguidade, em relatos de escavações e descobertas arqueológicas e outras fontes documentais, segui em muitos casos as notas, explicações e comentários minuciosos dos missionários Capuchinhos, estudiosos incansáveis para uma interpretação circunstanciada dos livros sagrados, que frequentemente apresentam uma explicação científica para os supostos fenómenos milagrosos ou apontam as ligações e analogias entre os textos da Bíblia, escritos muitos séculos depois de circularem na tradição oral, e as fontes históricas onde foi beber essa tradição, como o Código de Hammurabi ou as placas de argila da biblioteca de Assurbanípal, com os mitos e lendas da Mesopotâmia, como o Dilúvio provocado pela subida das águas dos rios Tigre e Eufrates e a destruição de Ur.

Li os textos da Bíblia não com a inocência maravilhada da juventude, mas com o distanciamento de mais de meio século de existência. Li-os com a curiosidade do estudioso (os históricos e os dos provérbios, mais objectivos ou práticos), com o prazer do poeta (os dos cânticos e salmos), com o humor zombeteiro do céptico (os fantasiosos e absurdos, de pura lenda), com a repugnância de um humanista face ao atropelo dos valores éticos e morais (os episódios crudelíssimos das mortes sem sentido ou do uso e abuso degradantes da mulher).

Por outro lado, não era possível ignorar, mesmo que o quisesse fazer, a componente erótica fortíssima que percorre, de modo gritante, persistente, direi mesmo obsessivo, todo o livro sagrado, transformando as suas pequenas histórias, cujos autores pretendiam que fossem de bons exemplos, em crónicas deliciosamente impudicas, terrivelmente escandalosas e, por vezes mesmo, inacreditavelmente depravadas e imorais, por isso mesmo, pulsantes de vida.

O meu maior desafio, enquanto mulher e escritora, foi a utilização dessa componente erótica como elo de ligação dos capítulos/episódios deste romance no feminino, com recurso a uma linguagem subtil, sensual e poética, ainda que, por vezes, assaz violenta devido à própria matéria das narrativas originais. Foi tarefa árdua pôr em palavras, com o necessário distanciamento, a história das mulheres do Antigo Testamento, tão remotas e contudo tão próximas de nós. Uma saga de terrível sofrimento e luta constante, com as armas do seu próprio engenho e arte, pela sua dignidade e por um lugar na sociedade, a par dos homens.

Procurei mostrar o percurso dessas nossas antepassadas, através de sucessivas gerações, num mundo em que as descendentes de Eva eram consideradas pelos homens como mercadoria e inferiores aos animais, conceito que perdura ainda hoje, perpetuado por determinadas interpretações fundamentalistas dos livros ditos sagrados, em nome de uma “verdade” religiosa ou ideológica que nenhum Deus, bom e justo, poderia alguma vez sancionar ou sequer tolerar.

Deana Barroqueiro