Entrevista por Teresa Horta a Deana Barroqueiro, no Diário de Notícias
Teresa Horta - Pretendeu dessacralizar o Antigo Testamento?
Deana Barroqueiro - Em parte sim. Tudo começou com uma investigação que estava a fazer para um dos meus livros históricos, a propósito da qual fui à Bíblia para reler a história da rainha de Sabá e do rei Salomão e, como não gosto de ficar a meio de nada, reli todo o Livro do Génese. Então, comecei a reparar na conotação erótica daquelas histórias e tive vontade de tentar esse lado da escrita, sem saber se conseguia fazer um conto erótico.
T.H. - Foi um desafio?
D. B. - Foi um desafio imenso! Um projecto que nunca supus ser capaz de levar até ao fim. Nem sequer tenho grande conhecimento da literatura erótica, para além daquela que todos conhecemos do tempo da juventude. No entanto, em dez noites escrevi seis contos, unidos pelo erotismo.
T.H. - Contos? Não será antes um texto único?
D. B. - É de facto um texto único, um romance. No fundo, esta colectânea é uma tentativa de recriar os ambientes da antiguidade pré-clássica, quer na Mesopotâmia quer no Egipto, através da mulher e do seu sacrifício ao longo dos tempos.
T.H. - Pretendeu captar o olhar que elas tinham sobre os homens do seu tempo?
D. B. - Sim. Neste livro mostro os patriarcas, os sacerdotes e os reis sob o ponto de vista das mulheres. Vou recriando a história da Bíblia, mas de uma maneira realista. Ou seja, sem ser através da história religiosa, mítica.
T.H. - O elemento de ligação entre os contos não será a mulher em vez do erotismo?
D. B. - É difícil separar uma do outro. Mas a ideia era ser o erotismo, pegar nesse filão, inseparável da mulher. Até hoje têm sido os homens a «fazer» o erotismo, focalizando-o nas mulheres, que por seu lado têm calado as sensações eróticas, o seu prazer. Parece até que há um certo medo...
T.H. - E também uma certa vergonha?
D. B. - É isso, uma certa vergonha. O que, em vez de deter-me, empurrou-me para a escrita deste livro.
T.H. - A confrontar o corpo profano com o corpo sagrado?
D. B. - Em certa medida, sim. Pretendi retirar tudo quanto era religioso, pegar no Antigo Testamento como se pegasse na Ilíada ou na Odisseia, tentando transformá-lo numa série de histórias do mundo real. Quis mostrar como é que viviam aqueles nómadas, como é que, sem ser por intervenção divina, se justificam determinadas coisas, tais como as velhas de noventa anos engravidarem e parirem crianças saudáveis, e os velhos de duzentos anos, terem uma sexualidade exuberante, rodeados por raparigas que lhes davam filhos.
T.H. - E as visões? Os sonhos proféticos?
D. B. - Tomei uns e outros como superstição ou ignorância, ou mesmo como «esperteza saloia», ou seja, o modo de as mulheres conseguirem alcançar aquilo que querem e que, de outro modo, não conseguiriam.
T.H. - Porque escolheu estas e não outras mulheres do Antigo Testamento?
D. B. - Talvez porque as suas histórias me revoltaram, ou me encantaram particularmente. E também porque, em certa medida, o seu estatuto mantém pontos em comum com o das mulheres dos nossos dias.
T.H. - Mulheres destruídas pelo poder divino?
D. B. - Eram usadas e destruídas, pura e simplesmente. Eram ignoradas, encaradas como objectos. Mas não creio ter sido o poder divino a aniquilá-las, antes a interpretação que os homens fazem do divino. Apesar de tudo eram mulheres fortes.
T.H. - Mulheres fortes ou invisíveis?
D. B. - Fortes e invisíveis! Mas, provavelmente, essa é uma projecção que faço. Sei apenas que tentei dar um retrato de certo modo realista, de como era a vida naquele tempo, de como seriam as mulheres de então.
T.H. - Seres a quem Deus nunca fala?
D. B. - Deus só fala às profetisas, com Débora. A verdade é que no Velho Testamento, de uma maneira geral, Deus não fala às mulheres. Nem sequer a Sara...
T.H. - Quando escreveu estas histórias, sentia-se uma cronista ou uma ficcionista?
D. B. - Procurei ser uma cronista. Gosto de escrever textos históricos, mesmo quando os transformo em aventuras.
T.H. - Neste caso, não há um olhar moderno, trocado por um olhar magoado?
D. B. - Só o leitor pode responder a essa pergunta. A única coisa que sei, é que sempre me afligiu a condição da mulher, em todos os tempos. Na época que refiro, eram meros objectos de troca, de venda. Continuam a sê-lo, em muitos lugares no mundo.
T.H. - Estes histórias foram imaginadas a partir da visão das mulheres?
D. B. - Nunca me demoro muito a imaginar uma história, a história conta-se-me, e é isso que me fascina na escrita. Contudo, tentei pôr-me na pele de cada uma dessas mulheres.
T.H. - Não põe em confronto o poderoso universo masculino com o universo intimista feminino?
D. B. - Ponho em quase todas as histórias. Referindo um certo poder ínvio, que as mulheres se vêem obrigadas a usar.
T.H. - Um poder sempre marginal?
D. B. - Sempre! E foi isso que pretendi denunciar, mostrando muita coisa que tem andado tapada.
T.H. - Tal como a pedofilia, tolerada no Antigo Testamento?
D. B. - Precisamente! Repare naqueles velhos todos, casados com crianças de nove, 11, 12 anos! Bem sei que, então, elas faziam-se mulheres mais cedo, mas mesmo assim, é revoltante! No Corão, Maomé, por exemplo, casa com uma miúda de seis anos e consuma o casamento quando ela tem nove, vem lá escrito!
T.H. - E também vem lá a mutilação sexual?
D. B. - Li vezes sem conta o Velho Testamento e não encontrei nenhuma mutilação sexual, embora nele as mulheres sejam maltratadas. Foi uma horrenda invenção ou interpretação posterior.
T.H. - Porque não escreveu sobre as mulheres do Novo Testamento?
D. B. - Preferi as mulheres do Antigo Testamento pela violência que pesa sobre elas. Por isso, eu não gosto nada do Antigo Testamento! Acho mesmo que é um livro de maus exemplos! Tem todos os defeitos e muito poucas virtudes.
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