Romance: Tentação da Serpente


Um olhar feminino sobre o Antigo Testamento.
Uma história de mulheres, para mulheres, de que os homens também gostam.

"Tentação da Serpente" é uma reedição de "O Romance da Bíblia", publicado em 2010.

14 junho 2010

Apresentação em S. Pedro do Sul - Isabel Prates

Deana Barroqueiro dedica Tentação da Serpente/O Romance da Bíblia “A todas as Mulheres mal-amadas, sofridas, exploradas, maltratadas, violentadas ou assassinadas em nome de uma religião, tradição, ideologia ou preconceito.”

Desde o início este é, claramente, um romance no feminino, mas superior ao género e ao número, imune às grades convolutas do tempo e do espaço. E toca todas as farpas que ainda ferem a condição da mulher na sociedade actual: a religião, a tradição, a ideologia e o preconceito

É formado por um texto introdutório, repassado de uma fina ironia, que serve para mergulhar o leitor no tema e no contexto, que nos promete um sentido de humor inteligente, completamente livre de peias e despudorado. O episódio da criação divina da mulher e da sua apresentação ao primeiro homem seria hilariante se não fosse tão tragicamente humano.

Seguem-se 19 capítulos-contos, que apesar de serem estruturalmente compartimentados se encaixam no esqueleto do romance, conferindo-lhe consistência e unidade. Cada conto que terminamos faz-nos iniciar avidamente o seguinte, presos na teia das palavras, magistralmente vivas, que nos fazem vibrar e sofrer, como se cada personagem fosse parte da nossa própria vida. E cada personagem é simultaneamente do seu tempo e do nosso e nós descobrimos, em puro espanto, que somos simultaneamente do nosso tempo e do delas, como se o tempo fosse um rio e a perspectiva apenas mudasse consoante a margem donde o observamos.

É um romance construído no feminino, mas desenganem-se aqueles que pensam que é uma apologia cega da mulher! As personagens são mulheres no feminino real, com a sua força, como Maqueda, a rainha do vento sul, a sua coragem, como Susana, a sua sensibilidade como Judite e também com a sua manha, como a prostituta Dalila e a sua maldade. São mulheres que despertam a nossa compaixão, como a infeliz Adah e mulheres que despertam a nossa revolta, como Sara, porque o sofrimento não pode ser pretexto para a crueldade, sobretudo quando exercida contra quem é indefeso, como a sua escrava Agar.

Também as personagens masculinas são resgatadas do estereótipo original, e descobrimos a cobardia desprezível de Abraão, o desespero do pobre Jacob, que se deu conta de que o paraíso masculino é afinal um inferno, com aquelas 4 mulheres insaciáveis e vorazes. (Eu desconfio, aliás, que depois deste romance, haverá uma procura imensa de mandrágoras!) a fiel integridade de José, a crueldade do hipócrita Makhir que se desculpava do seu atroz egoísmo com a vontade de Deus, a correcção e a sensibilidade amorosa de Booz, a astúcia de Tobias para resgatar a esquizofrénica Sara das garras de Asmodeu.

Tentação da Serpente/O Romance da Bíblia é, inevitavelmente um romance polémico, porque ousa tocar uma temática muito sensível. E é incómodo porque nos mostra que a nossa sociedade não é, na prática, assim tão diferente da misoginia praticada nos tempos bíblicos. É incómodo porque nos faz pensar, porque nos obriga a ver com olhos desvendados.

Aqueles que, à partida, questionam a validade do romance porque recria as velhas histórias da Bíblia, aposto que nunca leram o texto que aceitam como sagrado e se o fizeram, certamente não leram o romance. Se o lessem perceberiam que não há nele qualquer desrespeito pela Bíblia. Há apenas o resgate da velha arte de ensinar que anima o contador de histórias. Há histórias que nos divertem e nos dão lições de vida. Há vidas que nos pregam dolorosas rasteiras e nos fazem questionar a nossa fé e as nossas convicções. As personagens, como Salomão, têm crises de fé e questionam-se, como nós, como pode Deus, sendo Todo-poderoso, permitir o sofrimento de quem não tem qualquer sombra de culpa. Só o fundamentalismo cego tem a pretensão de manter intocável um texto sagrado.

Eu acredito convictamente que em literatura não há intocáveis.

A escrita de Deana Barroqueiro tem a leveza e a aparente facilidade do que é perfeito. Tem a maturidade de quem já nada precisa de provar, tem a beleza de quem pinta com palavras todos os matizes da sensibilidade humana e tem a força interventiva de quem não baixa os braços e faz das palavras as armas de paz para construir uma sociedade mais justa e mais humana.

Eu diria mais feminina… mas acho que é pura provocação.

Eu admirava a escrita de Deana Barroqueiro. Agora que tive o prazer de a conhecer pessoalmente penso que aquela escrita só poderia nascer de uma pessoa assim: admiravelmente bonita e humana.

Maria Isabel Prates

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