Um romance histórico, como o próprio nome indica, deve oferecer ao leitor, além de uma narrativa dos factos, uma recriação da época e dos lugares tanto quanto possível verosímil. Assim, para fazer reviver as tribos de pastores nómadas da Mesopotâmia ou as cortes dos reis da Pérsia ou dos faraós do Egipto, não só tive de estudar muitas obras de História da Antiguidade pré-clássica, ler artigos de arqueologia, consltar mapas e ver inúmeras fotografias de objectos desse tempo, a fim de os poder descrever com rigor. Ora os meus leitores, que já têm aqui um "slideshow" de quadros célebres representando as heroínas deste romance, talvez gostem de ver alguns dos objectos e lugares que me serviram de base para a recriação dos ambiente de algumas destas histórias, como por exemplo Os Cuidados de Abraão, Cap. II, quando Abraão e Sara vão consultar os deuses no templo ou zigurate de Ur:
"O zigurate erguia-se no meio da cidade, sobre uma enorme plataforma, com uma elevação de cerca de quatro metros, formando um átrio ou praça, com vários templos secundários e outros edifícios. Atravessando o átrio, chegava-se a uma nova plataforma, ainda mais elevada, sustentando a torre sagrada, com mais de cem metros de altura e dividida em três andares.
Os dois primeiros, de forma quadrada, rasgavam-se em terraços abertos, plantados de árvores e flores que lhes davam o aspecto de jardins suspensos, de belíssimo efeito. Três lanços de escadas de oitenta degraus convergiam do rés-do-chão para a porta monumental do primeiro andar e continuavam até ao último onde se erguia o pequeno templo. Por elas desfilavam as procissões de sacerdotes e sacerdotisas, nos seus trajos coloridos de festa, carregados de ofertas que iam depositar no altar do deus tutelar.
Na Casa do Segredo, as ervas de cheiro ardiam nos incensários e, diante da família de Taré e de outros fiéis, os sacerdotes davam início às cerimónias do sacrifício do carneiro, entregue por Sarai no dia anterior, para lerem nas suas entranhas os augúrios do deus Marduk. O animal, de cornos untados com óleos sagrados, jazia amarrado sobre a ara, balindo de medo. Ao som das harpas, dos tamboris e das flautas dos músicos do zigurate, os três sacerdotes depuseram no altar as oblações trazidas por Sarai e fizeram as suas libações."
Abraão parte em busca da terra prometida pela Voz dos seus sonhos e, depois de muito peregrinar com a sua tribo, acolhe-se ao Egipto. Sarai (Sara) é muito cobiçada pelos homens, devido à beleza, e Abraão com medo que o matem apresenta-a como sua irmã e não como esposa. Sarai torna-se, então, na concubina favorita do faraó do Egipto e conhece os prazeres requintados da corte passeando no Nilo, na barca real, banhando-se nua ou jogando o senete e outro jogos de amor com o poderoso filho do deus Amon-Ra.
"A barca, de um só mastro e com a vela recolhida, tinha uma graciosa linha curva, própria para navegar no Nilo e estava decorada e pintada com flores de lótus (o símbolo das Ter-ras Altas do Egipto) e papiros (o emblema das Terras Baixas) e com as figuras de Horus, o deus-cabeça-de-falcão incarnado pelo Faraó, de Sobk, o crocodilo sagrado e da cobra Uto, o olho flamejante do Sol, anunciando a todos os súbditos que ali seguia Sebekhotep para um passeio no rio ou uma sortida de pesca e caça nas suas margens. Acompanhavam-na, a curta distância, numa formação em semicírculo, oito barcos com uma hoste de soldados bem armados e prontos a entrar em acção.No convés da barca, à popa e à proa, dois biombos de bambu entrançado abrigavam a tripulação de remadores que, de pé, manobravam cadenciadamente os quatro remos compridos apoiados nas altas forquilhas de uma barra fixa. No centro da embarcação erguia-se a espaçosa cabina rectangular com duas portas, encimada por um telhado em forma de degrau ou sótão, com quatro janelas de cada lado, luxuosamente mobilada para albergar o filho de Amon-Ra e a sua favorita.
– Bastet, perdeste de novo! – disse Sebekhotep, rindo-se da expressão amuada de Sarai e dando-lhe carinhosamente o nome da deusa-gata do amor, adorada pelos povos do deserto.
Reclinados num leito sumptuoso, tinham entre ambos um tabuleiro com o desenho de um corpo de serpente enrolado, cujos anéis indicavam prémios ou castigos, decididos pelo lançamento dos dados de marfim que os faziam recuar ou progredir no jogo. Ao lado do Faraó, uma peruca e um corpete de mulher mostravam as perdas de Sarai que procurava cobrir os seios nus com a longa cabeleira solta, enquanto a sua mão repousava sobre um pequeno monte de jóias, fruto dos castigos infligidos ao Bom Deus do Egipto.
– Escolhe tu o meu castigo, Divino Senhor.
– Uma dança de Ishtar!
No decurso de quatro meses, Sarai desabrochara na corte de Tebas como a flor de lótus no vale do Nilo, adquirindo a elegância e graciosidade de uma princesa real, sem todavia perder a sua natureza silvestre, de uma sensualidade bravia. Sebekhotep, requintado e culto, soubera limar as ásperas arestas, sem no entanto destruir o fogo do ka, da sua alma, o verda-deiro ser da nómada Sarai, tão diferente de todas as mulheres do harém e, por isso mesmo, tão cara ao coração do seu amante. E a favorita, iniciada por ele nos jogos voluptuosos de Bastet, incitava-o ao amor com ousadia, cantando e dançando as canções selvagens e lascivas de Ishtar, acirrando-lhe o desejo com palavras e gestos, como jamais se atrevera a formular por serem tabus da sua tribo. Por trás dos biombos que os resguardavam dos olhos das servas, soaram os primeiros acordes de uma estranha melodia e Sarai, no espaço íntimo da alcova, cantou a canção de amor de Ishtar, não com as modulações da sua voz, mas com os meneios do seu corpo, numa linguagem mais eloquente do que todas as palavras, porque vinha do íntimo da terra, ora ondulando como a água, ora sussurrando como o ar ou queimando como o fogo. Quando o corpo nu da favorita se prostrou numa dádiva, aos pés do Filho de Amon-Ra, o Soberano do Egipto tomou-a nos braços e esqueceu por completo as humilhações dos Hicsos e o surto de peste que ameaçava o seu reino.
Os remadores ergueram os remos ao alto, junto à pequena ilha de Séhail, cerca da primeira catarata, deixaram deslizar a barca até à orla de areia branca e lançaram uma prancha em terra, gritando em seguida para a água, a fim de afugentar algum crocodilo mais atrevido que se tivesse aventurado na baía:
– Ao largo! Vai-te, maldito crocodilo! Não te acerques de nós. Vai-te! Sabemos palavras mágicas para te destruir.
Depois fizeram libações a Toeri, a deusa da fecundidade com cabeça de hipopótamo:
– Fecunda é a tua vida, ó divina Toeri, Senhora do Nilo! Os braços das mulheres imploram o teu ka, acorda para a vida e torna-as férteis como as terras do delta depois de baixarem as águas. A tripulação recolheu-se por trás dos biombos, pois a sua presença não era permitida junto das mulheres do Faraó, nem os seus olhos podiam contemplar a sua nudez, com risco de lhos quebrarem como castigo. As servas prepararam tudo para o banho e despiram o Filho de Amon-Ra, em respeitosa adoração."
Fotos tiradas em parte de http://www.rainbowcrystal.com/egypt/
Sem comentários:
Enviar um comentário