Romance: Tentação da Serpente


Um olhar feminino sobre o Antigo Testamento.
Uma história de mulheres, para mulheres, de que os homens também gostam.

"Tentação da Serpente" é uma reedição de "O Romance da Bíblia", publicado em 2010.

17 fevereiro 2011

Uma Leitura do Romance

Quando é cada vez mais raro encontrar alguém capaz de fazer uma crítica literária fundamentada, é um prazer infinito e uma honra ver o meu livro ser comentado deste modo pela professora e investigadora Dra. Maria Manuela Martins Gamboa. LEITURA DO ROMANCE

(como trincar cascas de laranja cristalizadas com chocolate ou qualquer fruto mal maduro...)

Isto porque se eu quisesse propor um subtítulo, ou antes, se calhar, uma espécie de epígrafe para Tentação da Serpente/O Romance da Bíblia escolheria inspirar-me num excerto deste mesmo livro (p. 152) e que seria qualquer coisa como: o romance da “vulgaridade humana” (desnudada da) “compostura cerimoniosa” (...) “polida e brilhante”.

Logo no conto “No início”, o feitiço volta-se contra o feiticeiro na medida em que Deus amaldiçoa e castiga o que, afinal, criou à sua imagem – o homem e a mulher.
Como diz Teresa Horta no prefácio: “Deus não gostou do que fez”.
E como afirma a narradora na p. 52: “O homem é a sombra de Deus mas o escravo é a sombra do homem livre”.

No entanto, e apesar da sua insatisfação e descontentamento, Deus concede-lhes o benefício da dúvida e, condescendentemente, indica-lhes – ao homem e, por inerência, à mulher até porque (como recita Rebeca, p.109) “(...) a mulher é o futuro de um homem (...)” – o caminho e o destino através do SONHO.
Até porque, tal como afirma a narradora, na p. 42, “Os Deuses criaram os sonhos para indicar o caminho aos homens quando eles não sabem ver o futuro”.

O sonho, que vai ritmando o universo ficcional de cerca de 13 dos 19 contos/capítulos deste romance como uma espécie de refrão ou “leit-motiv”, é o instrumento divino ou sagrado ou ainda voz inquestionável que, a um tempo, determina e sanciona, revelando-se como única fonte de conhecimento porque meio intercomunicador entre a dimensão mística e mágico/fabulosa do sobrenatural religioso e a dimensão material e quantificável do quotidiano terreno e humano que dá ao homem a segurança de premonitoriamente ver/saber o futuro.

O sonho como fonte de conhecimento é, afinal, transversal a quase todos os contos mas vai adquirindo contornos que se actualizam de acordo com a vontade imperativa dos deuses e as necessidades básicas da sobrevivência humana ou, se calhar, o homem precisa de legitimar as suas decisões e comportamentos pela memória, às vezes translúcida, de uma voz de Além:

No 1º conto, “Arca de Noé”, o sonho implica obrigação, isto é, agir como manda a voz do princípio criador porque contrariá-la significaria inexistir. E assim, provavelmente, não estaríamos agora, aqui, a discorrer sobre Noé e as aventuras do Velho Testamento...

Por isso, não mais o carácter obrigatório do sonho se impõe ao simples mortal, manifestando-se, já no 2º conto, como o desejo de partir em demanda de, também significando, ao longo dos contos lidos, promessa, protecção, segurança, premonição de bênçãos, profecia de futuro – ou seja, o sonho traduz os anseios solares mais veementes e importantes do bicho infinitamente pequeno que é o homem e a mulher – por um lado – mas espelha igualmente o desejo de poder, sancionando a mentira de conveniência, exigindo a cobrança de dádivas já magnanimamente concedidas pelos deuses, ameaçando com pesadelos de sobressalto, preparando sensorialmente rituais de acasalamento, profetizando a fecundidade ( que é riqueza e estatuto no homem e possibilidade de viver e de existência na mulher ) – por outro lado – ou seja, o infinitamente grande orienta e concede a concretização dos destinos desculpabilizando e sublimando, através do sonho e/ou da voz profética, os desesperos, as ambições, os interesses, as astúcias, as mentiras, as culpas, as vinganças, os excessos, as seduções, a luxúria, a supremacia dos poderes que se jogam às escondidas pelos nossos trilhos lunares.

Afinal, a Deana não se divertiu a sós com ela!
A Deana brinca connosco: usando o sonho e a voz dos deuses – primeiro – e, a partir do 9º conto, – depois – a dos seus mandatários feitos homens e uma mulher ( a profetisa Débora do conto “ A dívida de Sisara” ), a Deana tira-nos o retrato, acutilantemente, com o seu sorrisinho matreiro e vivo! Põe a nu, literalmente, a nossa condição humana.
Mas dá-nos, no último conto, um conselho por sentença:
“Não ponhas a tua crença e confiança em reis e príncipes” (p. 344), sejam eles deuses (simbolicamente falando), profetas ( miticamente falando ) e, sobretudo, homens ( autocraticamente falando ).

A função do sonho ou da voz profética entrelaça-se, assim, na vida quotidiana dos que, apesar da sua condição terrena de mortais, têm poderes para interpretar e agir sobre os tempos, os espaços e, principalmente, sobre o outro, sobretudo se for mulher .
Lembro-me, por exemplo, da viagem iniciática de Noé, da predestinada demanda do lugar sagrado das terras da Palestina por Abraão, da construção e sagração cosmogónica de Bethel por Jacob, do dom de visão premonitória de José ( filho de Jacob ) ou da devolução de Sara ao marido Abraão por Abimalec, o amante raptor, apenas porque um pesadelo lho ditou.

A dimensão pragmática do sonho e/ou das vozes cúmplices serve igualmente um outro tipo de conhecimento que é o da sabedoria prática mas ardilosa, astuciosa do ser humano, fabricador de mentiras de conveniência, persuasoras e provocadoras de comportamentos.

As intrigas de todos os contos dinamizam-se pelo jogo de tensões e seduções conduzidas pelo homem e pela mulher, assentando, quase sempre, na mentira disfarçada de verdade, ora protagonizada por um, ora pela outra – segundo os fins a atingir: os do homem porque mede a sua existência pela pujança da sua virilidade, pelo poder de ser dono de mulheres férteis, de ter numerosa prole e de ostentar abundâncias e riquezas; os da mulher, tradicionalmente obreira de procriação e moeda de troca, sem direitos – a não ser na medida em que ao homem lhe fosse conveniente e benfazejo – enquanto defende, calculadamente, o seu direito a existir pelas premeditadas consequências que as perversidades, as luxúrias, as astúcias e as mentiras exercem nas reacções e decisões dos homens, já que a percepção do mundo é masculina.

A mentira é, assim, o alicerce da dignidade masculina e a garantia da liberdade e do livre arbítrio femininos, como único caminho de dizer “basta” a todo o tipo de humilhações aqui descritas que a narradora bem sintetiza nas palavras sábias proferidas pela rainha Vashti, repudiada pelo rei Xerxes I da Pérsia porque ousou fazer-lhe frente, opondo-se à ordem de exigir a sua presença junto dele:
“Não te entregues como escrava a nenhum homem” ( in “O Ardil de Ester”, p.326 ).

A vida – e até a morte – de reis e rainhas, concubinas e escravas, eunucos e guerreiros e demais gente do povo decorre, oficialmente, no embuste e o faz-de-conta “abençoados” pelos sopros sibilantes do Além.

Interessante é que, à medida que vamos progredindo na leitura destes contos, damo-nos conta de que a submissão e obediência da mulher – e correspondente trama de mentiras do homem – evoluem de modo inversamente proporcional à preponderância masculina: de facto, a revolta pela sua condição vergonhosa e aviltante vai urdindo a manha da mentira, disfarçada de verdade, tal como – afinal – foi aprendendo, talvez sem querer, com os homens que, de uma maneira ou de outra, a foram tocando.
E...
“Quem quebra a cerviz, não quebra os rins” ( p.145 )

A hipocrisia masculina vai, por consequência, dando lugar à hipocrisia feminina mas isso acontece sobretudo a partir conto V, “O harém de Jacob”, para se acentuar no conto VII, “A esposa do eunuco”, no conto VIII, “As provações de Judá”, no conto IX, “A dívida de Sisara” onde se acrescenta à mulher ardilosamente vingativa a solidariedade conivente e cúmplice da pitonisa Débora que, juntas, vencem a preponderância masculina.
Também no conto X, “As matanças de Sansão”, a desonestidade e a traição de Dalila determinam a tragédia que, agora, é dádiva de vida do próprio Sansão.
E fica a sentença:
“Não contes segredos a uma mulher” ( p. 341 )

Contudo, é só no último conto, “O Ardil de Ester”, que as artimanhas que servem o jogo de interesses das amas das concubinas do Rei, em especial de Andya, ama de Ester, igualam as dos eunucos, guardiães das mulheres, em especial Hegai, eunuco protector de Ester, resultando a supremacia da mulher que consegue já determinar a sua vida pela esperteza que se sobrepõe à do rei Xerxes I da Pérsia que, de resto, chega a comportar-se caricaturalmente como uma criança manipulada que só terá o “brinquedo” desejado quando a cumplicidade feminina de Ester e da sua ama Andya o permitir.

Assim sendo:
“ Vale mais um homem paciente do que um herói” ( p. 221 )
- nem que a isso obrigado seja – acrescento eu.
E:
“a mulher formosa alcançará glória e o homem diligente alcançará fortuna” 8 p, 222 ) ainda que , mesmo assim,
“as sortes lançam-se no regaço mas é o senhor quem decide” ( p. 222 )

Planando sobre Tentação da Serpente/O Romance da Bíblia, diria que, apesar de tudo, a mulher ascende a um lugar confortável, mais respeitado ou, pelo menos, equilibrador, no patamar cimeiro de um qualquer zigurat cujo primeiro socalco, dominado pelo homem como princípio gerador – ainda que “por mandato” – e investido de poder deliberativo, sentenciador, executante e, sobretudo, de progenitor, inicia, degrau a degrau, a textura enredada de outros tantos solavancos como as arbitrariedades do poder, a mentira, a astúcia, suportadas pela reminiscência da voz sonhada que credibiliza, ao fim e ao cabo, a repetição simbolicamente monótona dos gestos brutais e pantanosos deste universo masculino e as ousadias frágeis e debilmente dinâmicas deste universo feminino.

O romance é um olhar-síntese unificador de tempos porque segreda – e às vezes grita – a inquietação das culpas herdadas, das violências ancestrais, das vinganças primordiais, a discussão surda e latente das supremacias dicotómicas sempre excessivas e desgastantes mas também segreda e, às vezes, grita a percepção da simbiose fluida do espírito e do corpo, da essência do ser e da força vital e sexual que são o nosso próprio GENESIS e nos fazem.
Pena é que o nosso percurso tenha começado de boa fé e má consciência e tenha evoluído pela má fé e boa consciência: este não é, decerto, o caminho da dignidade e do respeito justos do homem e da mulher.
No fundo, o mundo dos arquétipos essenciais mantém-se; só a forma como os recheamos é diversa ao longo dos tempos, actualizando-os da amálgama subconsciente – e, por vezes, consciente – das memórias herdadas.

Penso que é de tudo isto que a Deana nos fala através do seu olhar especulativo, do seu dizer duro e mordaz, por um lado, e desassombrado e divertido por outro.

Não é a Deana que acredita que:
“o coração alegre cura o corpo, o espírito triste seca os ossos”? ( p. 221 )

Maria Manuela Martins Gamboa

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