A filha de
19 anos de um casal alentejano fugiu para a Síria no início do mês e casou-se
com um guerrilheiro do Estado Islâmico, também ele português. Os pais só sabem
dela através do Facebook. Na semana em que os jihadistas decapitaram mais um
jornalistas norte-americano, o Expresso recupera um artigo publicado na edição
de 30 de agosto do semanário.
Raquel
Moleiro e Hugo Franco |
11:19 Quarta
feira, 3 de setembro de 2014
Em Menbij,
no nordeste da Síria, junto à fronteira com a Turquia, ninguém a conhece por
Ângela. Ali chama-se Umm. O marido também não é Fábio. É Abdu. Ele cresceu na
linha de Sintra, nos arredores de Lisboa. Ela na Holanda, para onde os pais
alentejanos emigraram. Ele já está na Síria há mais de um ano. É jihadista,
combatente nas fileiras do exército radical do Estado Islâmico (EI). Ela chegou
lá este mês. Nunca se tinham visto, mas já estavam noivos há vários meses no
Facebook. Através da rede social partilharam radicalismos e ambições de vida:
são ambos muçulmanos convertidos, extremistas, defensores do califado islâmico,
adversários do Ocidente e dos países "infiéis". E são ambos
portugueses.
Em três
anos, a guerra síria atraiu cerca de 2800 combatentes estrangeiros. Nos últimos
meses começaram a chegar as noivas da guerra santa. Em Al-Bab, a norte de
Alepo, os rebeldes abriram em julho um posto onde se registam as mulheres
solteiras e viúvas que querem casar com os mujahedin. A notícia foi avançada
pela agência Reuters, mas Ângela, 19 anos, não precisou dessa informação. Como
qualquer adolescente combinou tudo pela internet. Fugiu a 9 de agosto, casou a
10.
Nas fotos, Umm surge de niqab, um véu preto que lhe cobre
o rosto, só deixando de fora os olhos escuros. No estado civil lê-se: casada. O
pai não sabe bem o que pensar, o que dizer. Quando o Expresso falou com ele
tinham passado poucas horas desde que a ex-mulher lhe contara da fuga, da
Síria, do casamento. A internet estava agora a confirmar o que lhe parece
"inacreditável, irreal".
Os pais de
Ângela estão separados. O pai vive no Alentejo, onde nasceu. Ela morava com a
mãe e a irmã mais nova nos arredores de Utrecht, na Holanda, para onde o casal
tinha emigrado há largos anos. "No fim de semana em que fugiu a mãe tinha
ido à Bélgica. Ela ficou em casa sozinha, o que era absolutamente normal.
Ninguém suspeitou de nada. Porventura já estava tudo combinado há muito tempo.
Já lá falou com a mãe pela internet a contar o que tinha feito. Que nojo. Nem
sei com quem casou, não sei nada".
A história
de Ângela é contada pelo pai : "Tornou-se muçulmana
radical há cerca de um ano, foi tudo extremamente rápido. Por isso é que fiquei
surpreendido, não consigo entender". Nasceu na Holanda, numa família de
tradição católica mas não praticante. (...) Era uma miúda liberal em todos os sentidos:
fumava, gostava de se divertir, de beber uma cerveja ou duas ou três. Era
sociável, não tinha nada a ver com burqas, com os fatos dessas loucas. De um
momento para o outro começou com estas ideias".
Ângela
estava desempregada. "Não quis estudar. A mãe tentou tudo, escolas
especiais mas nunca chegou a bom porto. Ela só queria computador, computador,
computador". No computador era Umm, fundadora e administradora do grupo
Islão no Coração (assim mesmo em português - entretanto desativado), defensora
acérrima da guerra santa na Síria e no Iraque e frequentadora de vários grupos
radicais islâmicos holandeses e ingleses. Por tudo isto começou então a ser
monitorizada pela secreta portuguesa. Identificava-se como alentejana, e foi
assim que, em maio, o Expresso a descobriu na rede e falou com ela.
"Os
jihadistas estão na Síria e no Iraque para que o regime não mate todo um povo.
A Jihad é uma coisa boa, não é má como dizem na televisão", justificou por
telefone.
A decisão (de fugir e casar na Síria) foi comunicada já em solo
sírio, num cibercafé. "Alhamdoulilah, cheguei em segurança ao Sham [grande
Síria]. Irmãs, não hesitem. Sinto-me tão bem, como se tivesse sempre vivido
aqui, sinto-me em casa. Insha'Allah, Alá irá reunir-nos a todos em
breve!".
O pai leu
todos os posts das páginas de Ângela e de Fábio à procura de informações e
explicações. Em nenhum lado se lê como a filha chegou ali, mas a pausa
declarada por Abdu no início do mês - "há 30 dias sob disfarce, a frente
de guerra espera por mim" - poderá indicar que o jihadista português foi
buscar a noiva algures no caminho que a levou da Holanda à Turquia e depois à
Síria.
Ângela e
Fábio moram numa zona residencial, juntamente com vários casais ocidentais, da
Holanda, Inglaterra e Alemanha. "Todos aqui vivem sob o estado islâmico,
sob as regras do Alcorão e da Sunnah", escreve Umm. As mulheres têm de
usar o niqab e só saem de casa com a permissão do marido. "É para nossa
segurança. Os homens sabem a que horas os aviões vêm e quando podem cair
bombas. Nesses dias é melhor ficar em casa", explica a uma amiga que vive
na Holanda e que lhe pergunta sobre as restrições impostas às mulheres.
"Os
media criam a ideia de que se vive no meio de uma guerra, mas não é tão
inseguro como dizem. É verdade que às vezes cai uma bomba, mas não se sente
medo. E se a bomba tiver escrito o nosso nome, tornamo-nos mártires,
Insha'Allah".
O pai de
Ângela recorda as últimas conversas com a filha, diálogos meio crispados,
opostos. "Às vezes ficava mesmo revoltado. Sabendo o que se está a passar
na Síria, o genocídio praticado por esses radicais que querem acabar com os
cristãos, os vídeos que vi no YouTube a matarem pessoas, a queimá-las vivas, e
ela a defender tudo, a justificar".
O radicalismo
de Umm mantém-se. No dia 22, publicou nas redes sociais a fotografia tirada
antes da decapitação do repórter James Foley, e escreveu: "Para aqueles
que dizem que era um jornalista, supostamente inofensivo, ele não era mais do
que um soldado americano que mata o nosso povo. Quantas pessoas foram mortas
por este tipo de palavras? São mortes inúteis? Uma morte americana fica muitos
milhares atrás de quanto eles nos têm matado". Noutro post comenta os
placards publicitários, que ali enaltecem a luta do Estado Islâmico: "Quem
vai ganhar? Os nossos outdoors ou aquelas mulheres seminuas a vender
desodorizantes?"
Quatro
portugueses no EI
Ângela
comenta a Jihad nas redes sociais, Fábio vai para a frente de combate. Fonte
ligada aos serviços de informação portugueses coloca-o na brigada Kataub al
Muhajireen do EI, constituída apenas por combatentes de países ocidentais, como
a Grã-Bretanha, Alemanha, França ou Dinamarca. Ao seu lado há pelo menos mais
três portugueses: dois irmãos, de 26 e 30 anos, que como Fábio, cresceram na
linha de Sintra; e um jovem de Quarteira, de 28 anos. São amigos no Facebook e
irmãos de armas na frente de guerra. Os quatro converteram-se ao islamismo
quando estavam emigrados nos arredores de Londres e daí partiram para a Síria.
O algarvio terá sido ferido com gravidade nas pernas há alguns meses e ainda
não regressou ao combate. Os restantes mantêm-se ativos.
O Sistema de
Informações da República Portuguesa (SIRP) confirmou em abril ao Expresso que
se encontram "referenciados alguns cidadãos nacionais que integram esses
grupos de combatentes", sendo que alguns "detinham um estatuto de
residência temporária em outros países europeus, embora apresentem conexões
sociais e familiares ao território nacional". O recrutamento é feito
"através da Internet" e de "estruturas logísticas formais e
informais que atuam à escala regional e global", adiantou a secreta.
Na semana
passada, os Estados Unidos consideraram que o Estado Islâmico representa uma
ameaça terrorista "para lá" de qualquer outra conhecida até hoje,
"junta ideologia, uma estratégia sofisticada, habilidade militar e tática
e está tremendamente bem financiado. É preciso estar preparados para
tudo". No Facebook, Ângela usa outras palavras para descrever a luta
jihadista na Síria, mas o sentido é o mesmo: "Quando olhamos para o cano
de uma arma vemos o paraíso, quando um avião sobrevoa as nossas casas estamos
prontos para receber a bomba, quando um pai cai mártir o filho está pronto para
substituí-lo. Faremos tudo para manter e expandir o nosso estado islâmico. Como
se pode ganhar a um povo que não teme a morte?"
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