As leis de Macau deixam muitas crianças sem meios de defesa, sobretudo, em casos de negligência e abuso dentro de casa. Patricia Ip, dirigente da Associação de Luta contra os Maus Tratos às Crianças de Macau, integra a Comissão de Direitos das Crianças de Hong Kong e participou em Genebra na última reunião da ONU para avaliar a protecção à infância em Macau. Não esteve presente qualquer organização não-governamental local.
Maria Caetano
- O Comité dos Direitos da Criança destaca que tanto em Hong Kong como em Macau não há ainda políticas dirigidas às crianças, num nível institucional, com objectivos claros e vias para a monitorização. Como vê esta situação?
Patricia Ip – É muito triste. Isto, porque não é a primeira vez que o Comité das Nações Unidas faz esta referência, já o dizia claramente em comentários feitos em 2005, recomendando uma política infantil e uma comissão da criança ou instituição humanitária que vigie a implementação da Convenção [dos Direitos da Criança]. A resposta dos governos de Hong Kong e Macau continua a ser a de há diferentes departamentos com a tutela das questões infantis e que realizam esse objectivo. Julgo que a ONU não aceita esta resposta. Não apenas em 2005, mas novamente agora o Comité reiterou que precisamos de uma instituição ou mecanismo específico que supervisione a implementação da convenção.
- No caso específico de Hong Kong, qual tem sido a argumentação?
P.I. – A resposta do Governo de Hong Kong é a de que há diferentes departamentos com políticas para as crianças, que comunicam muito bem entre si. Estão todos sob a secretária-chefe da Administração, que zela pelos interesses das crianças. Para nós, quando cada departamento tem a sua política significa que não é uma política transversal. Além disso, há imensas questões com as quais lidar, o que significa que frequentemente as crianças não são a prioridade. Pedir à secretária-chefe que garanta a implementação de cada um dos artigos da convenção é irrealista e não funciona. Na prática, as questões relacionadas com a infância são atiradas de um departamento para outro. Os problemas não são resolvidos. É por isso que precisamos de um uma entidade independente nomeada para supervisionar o processo. Tanto em 2005 como agora o Comité de Direitos das Crianças diz claramente que este mecanismo deve seguir os ‘Princípios de Paris’, sendo independente, representando vários sectores, tendo autoridade e financiamento adequado, bem como capacidade para investigar queixas de violação dos direitos das crianças.
- Em Macau, há uma única instituição não-governamental centrada na protecção dos direitos dos menores. O Governo continua a defender que tem antes uma política de juventude.
P.I. - A Associação de Luta contra os Maus-tratos Infantis é uma organização não governamental especializada na protecção de crianças. O Governo, através do Instituto de Acção Social, também lida com estas questões. Não somos a única agência com essa responsabilidade. Mas, relativamente às justificações apresentadas pelo Governo, este refere sempre que tem uma política de juventude. No entanto, a definição de jovem vai desde os 13 anos até aos 29 anos. Para as crianças, a definição é até aos 18 anos. Estão falhar até aos 12 anos. Além disso, muitas das questões que se colocam em relação à infância são diferentes daquelas que se colocam relativamente aos jovens. Definitivamente, uma política de juventude não cobre a Convenção dos Direitos da Criança.
- Ao nível da protecção legal das crianças, o que existe em Macau é a lei geral. Mais recentemente, discutiu-se a proposta de lei sobre a violência doméstica foi abandonada a ideia de criminalização pública que incluiria também a violência dentro de casa contra as crianças. Como vê este processo?
P.I. – Neste momento, estamos muito desiludidos. Quando a discussão começou, tínhamos esperança numa revisão legal que permitisse a denúncia de abusos ou negligência contra crianças dependesse do acto e não ficasse dependente dos pais ou tutores das crianças. Apesar de o Governo alegar que tudo o que é feito tem em vista o interesse da criança, não é claramente o caso. É possível ver nos dados entregues pelo Governo de Macau ao comité que há muito poucos casos de negligência e abuso chegam a tribunal. E em muitos deles a queixa é retirada. Isto indica claramente que a lei não está a proteger as crianças.
- O que sucede quando é o próprio encarregado do menor que é o agressor?
P.I. – Quando se trata de uma agressão física grave, pode haver iniciativa. Mas é necessário decidir o que é ‘grave’, havendo apenas um limite geral. Isto significa que só há acusação pública em casos extremamente graves e que há muitas crianças que não estão a ser protegidas pelo sistema. Depois, nos casos de abuso sexual envolvendo menores até 12 anos há também interesse público na acusação sem assentimento do tutor. Mas, para crianças com mais de 12 anos, é necessário o consentimento dos pais ou tutores. Se um deles for o agressor e ameaçar o outro, fazendo com que este não avance com a queixa, o caso é arquivado. Nestas circunstâncias, a criança acaba por ficar com a família e com o agressor, o que é altamente insatisfatório e deixa as crianças sem protecção. É por isso que defendemos que a lei da violência doméstica deve depender do acto cometido e não da vontade das vítimas.
- Qual é a principal razão para o abandono das queixas?
P.I. – Esta é uma das questões principais. No nosso trabalho em Macau, estamos cientes de situações em que as crianças são socorridas no hospital e depois um dos pais tenta levá-la embora. Os médicos não podem fazer nada, é um direito dos pais. Isto é extremamente insatisfatório.
- E, para lidar com estes casos, seria suficiente haver estatuto de crime público para violência doméstica?
P.I. – Obviamente, não é suficiente. É necessária muita sensibilização pública para que os casos sejam reportados. Uma das primeiras recomendações do Comité da ONU, em 2005 e agora, é a de que a denúncia seja considerada obrigatória. O que sucede actualmente em Macau é que os funcionários públicos estão obrigados a reportar o caso, o que já não sucede com professores, assistentes sociais e outro profissionais que possam tomar conhecimento de situações de negligência e abuso de crianças. Por outro lado, sabemos que há muitas crianças que são deixadas entregues a si mesmas em Macau – inquéritos da nossa associação mostram que muitos alunos do ensino primário são deixados sozinhos. Toda a gente aceita este tipo de situação e não a denuncia. É necessária sensibilização profissional e pública sobre o que constitui negligência e abuso infantil para podermos tomar conhecimento destes casos e ajudar estas crianças. Há ainda outra recomendação das Nações Unidas feita em 2005 e reiterada agora, na qual a organização defende a proibição dos castigos corporais em qualquer situação, mesmo dentro de casa. Isso significa que não aceitamos qualquer tipo de violência. Se a lei de Macau diz que a agressão acontece apenas quando há intenção de prejudicar, a maioria dos pais alega que o castigo é para o bem das crianças, para as tornar mais fortes. Talvez seja por isso que a violência física é tão aceite em Macau. Não é uma questão legal apenas. É preciso recuar um pouco e encontrar maneira de a população perceber o que é melhor para a criança, como a criar sem a agredir, quando denunciar. Depois, na gestão dos casos, é necessária muita formação profissional e colaboração. É importante também perceber como os órgãos judiciários olham para estes casos. Em Hong Kong, os casos envolvendo crianças têm prioridade nos tribunais. Se este sistema não existe, passarão um, dois, três anos e muito mudará. Além disso, até à condenação não se pode forçar o agressor a sair de casa. A criança fica sob o mesmo tecto que o suspeito, sujeita a pressões e novos abusos. Falta ainda também serviços de apoio e reabilitação para estes casos, que infelizmente continuam a não existir.
- Há uma acusação bastante grave que é feita às autoridades de Macau, relativa a situações de tráfico infantil, na qual o comité fala de corrupção e conivência por parte de dirigentes públicos. O comité fez mais menções a estes casos durante as reuniões que presenciou?
P.I. – Do que me recordo, não desenvolveram muito este aspecto nas sessões de audiência. Mas o relatório, nas conclusões, mostra especial preocupação com a falta de dados. Quando os números são muito baixos, isso não significa que não haja casos. A forma de recolher os dados é importante. Julgo que o comité quer informações apenas sobre as crianças que foram resgatadas, mas também o número daquelas que foram raptadas. Os esforços para a recolha destes dados dependem do Governo. Por outro lado, há muita preocupação de que as crianças sujeitas a tráfico estejam simplesmente apenas a ser enviadas para o lado de lá da fronteira.
- Os dados parecem indicar que apesar de ter havido mais de duas dezenas de menores traficadas nos últimos anos, apenas uma foi alvo de medidas de protecção. As restantes foram repatriadas sem que se saiba mais sobre elas.
P.I. – Nestes casos, é preciso saber que tipo de cuidados de saúde e de aconselhamento precisam, diagnosticar se sofrem de trauma psicológico e encontrar forma de as reabilitar. No repatriamento, segundo sei, muitas das crianças passam a fronteira para regressarem pouco depois. Portanto, isto não está a ajudá-las. Temos regiões administrativas especiais, mas ainda somo um país. Podemos agir melhor para resolver estes problemas. A ONU preocupa-se com todas as crianças individualmente.
- Terá de haver uma base que fundamente as alegações de que há corrupção e conivência por parte dos dirigentes de Macau.
P.I.- Não sei como chegaram a esta conclusão nem de que tipo de informação dispõem.
- As reuniões envolveram todos as participantes? Pôde perceber que tipo de discussões estavam a acontecer?
P.I. – O que sucede é que no processo, os governos têm conhecimento dos artigos da convenção e preparam um relatório antes da audiência. Macau enviou o seu relatório no final de 2012. Após a leitura, o comité marcou reunião para Setembro e, cerca de seis meses antes, em Fevereiro, reuniu dados de organizações não-governamentais que puderam enviar os seus representantes e Genebra para um diálogo com os membros do comité. A partir daí, o órgão prepara uma lista de questões para os governos onde pede informação adicional. É enviada a informação e a sessão é pública, ficando até online. Na nossa sessão, de seis horas, a maior parte das questões teve que ver com o Continente. Houve uma parte dedicada a perguntas aos dirigentes de Hong Kong e Macau. As organizações não-governamentais ficam sentadas no fim da sala e escutam apenas, não podem colocar questões.
- Refere que uma das preocupações é a de que estas vítimas menores estejam a ser repatriadas para voltarem imediatamente a seguir. Devia haver um sistema mais eficaz de identificação de criminosos e vítimas nas fronteiras?
P.I. – Porque se trata de tráfico, é necessária a colaboração entre as duas jurisdições, Continente e Macau. Tudo passa pela prevenção, detecção e reabilitação. O comité da ONU pede que se olhe para as razões que fazem com que as crianças estejam a ser traficadas. Há que ver como as crianças estão a crescer nos diferentes países, quais os cuidados que recebem, porque são raptadas e traficadas. Há também crianças cuja situação doméstica é tal que as leva a querer atravessar a fronteira, acabando por ser sujeitas a prostituição infantil, por exemplo. É ainda necessário perceber o seu contexto de origem e aquilo para que voltam após repatriadas prevenindo que voltem a ser traficadas. É necessária muita cooperação.
- Ainda assim os menores não deviam conseguir atravessar a fronteira sozinhos. Como é que isto acontece?
P.I. – Não conheço profundamente a situação em Macau. Mas em Hong Kong, por exemplo, há formas de entrar legitimamente na fronteira ou ainda com documentos falsos. Também podem chegar de barco clandestinamente. O controlo de fronteiras é importante, mas há que verificar a autenticidade dos documentos e averiguar circunstâncias suspeitas. Poderá haver muitas formas de entrar num país ou região sem ter de passar nas fronteiras.
- Outra questão que a ONU aborda é o sistema de adopção vigente em Macau, com muitas crianças ao cuidado de instituições e não em ambiente familiar.
P.I. – Olhando para as estatísticas do relatório, vê-se que há muito poucas adopções. Há assim tão poucas crianças disponíveis para adopção? Há crianças normais a serem adoptadas. E crianças portadoras de deficiência? Como é que se está a gerir a situação destas crianças? Sei também que há preocupação em Macau com a condição de adolescentes que pretendem abdicar dos filhos, mas é necessário que tenham 18 anos para que haja adopção. Isto beneficia as crianças? Quanto mais cedo puderem ser adoptadas, melhor. Manter estes bebés em instituições não é desejável de todo. Há por outro lado um sistema de acolhimento familiar, mas para crianças entre os três e os 12 anos, que poderá ser estendido até 18 anos. Mas não para as crianças até três anos. O Comité recomenda aos governos que procurem, sistematicamente, formas de retirar as crianças das instituições, e não o contrário.
(Ponto Final - Outubro 17, 2013)