crítica de Maria Teresa Horta
Quando um livro traz consigo a estrela da sorte, convocando os leitores e
os críticos num mesmo abraço – laço, dado pelo entusiasmo e o elogio literário,
como aconteceu a Deana Barroqueiro com “Contos Eróticos do Velho Testamento”, é
muito difícil para o escritor conseguir esgueirar-se por entre as enredadas
malhas do êxito, soltar-se desse peso que tolhe, para voltar a partir como antes, de um modo tão
solto, tão espontâneo e livre, quanto necessariamente inconsciente e louco, em
direcção da aventura incomensurável da escrita.
Reexperimentando nos lábios o veneno da queda.
Mas, também não é fácil para os leitores que amaram esse livro, e
sobretudo para os críticos que nele apostaram, elegendo-o com a experiência da
sua análise, voltarem a encontrar no trabalho seguinte, a satisfação
experimentada no anterior. Quase nunca resistindo, preconceituosamente, à
tentação de os comparar. Pior do que isso: exigindo serem mais surpreendidos do
que já o foram.
Deste modo, os leitores e os críticos partem para este novo livro...
...desconfiando.
Tal como, confesso, aconteceu comigo, ao entrar na leitura de “Novos
Contos Eróticos Do Velho Testamento”: temendo a repetição, a mera cópia, o
cliché, a recorrência a um idêntico imaginário e abordagem ficcional. Ou seja,
receava ir encontrar o uso, o truque, o abuso da efabulação, o embuste na
roupagem dos temas, numa tentativa de retorno constante. Repegando, truncando,
estragando a trama daquilo que nos primeiros contos surgia natural e liberto.
Afinal, a proposta, a raiz de onde tematicamente partia Deana Barroqueiro para
este segundo livro, era a mesma.
Só que a escritora, como num passo de mágica, com um talento e uma maturidade
invulgares, conseguiu contornar todas as dificuldades, e ressurgir com uma
escrita ainda mais bela, fulgurante e criativa; sabendo no entanto como
reencontrar as pontes, como manter a necessária ligação ao traço anterior:
Carnal.
Visceral.
Feminino.
Ousando a ousadia, mas também a contensão, usando o arrebatamento, mas também
o conhecimento do que está a tratar, teimando no fulgor, mas também na sombra,
adormentando-se no mel, mas despertando na dureza da crítica social.
Refugiando-se nos lugares das mulheres, mas enfrentando o olhar das figuras
masculinas que trata.
O livro de Deana Barroqueiro traz consigo a visão da mulher.
Lúcido olhar, que ao longo dos séculos tem faltado à visitação deste universo
da Bíblia: Velho Testamento moralista, repleto de anciãos preguiçosos,
libidinosos e lascivos, de brutamontes ignorantes e violadores, convocados por
um Deus irado frente à própria incompetência e à própria imagem, segundo a qual
teria criado o homem, de quem afinal não gosta e castiga. E é precisamente no
enredamento deste dilema, que se abrem as páginas do primeiro dos dezanove textos
que, fragmentariamente, irão formar um todo literário uno: falando de Noé e de
Jacob, de Isaac e de Sansão, de Asmodeu e dos circuncisos, de Labão e de
Abraão, arrancando-os do seu pedestal de heróis divinos, com uma habilidosa
crueldade implacável.
Aqui terminam as idealizações masculinas, os embustes. E começamos a examinar
de forma diferente, atenta e precisa, as figuras femininas, uma por uma: Sara e
Ester, Lia e Raquel, Jael e Pesechet, Dalila e Susana, que nos tinham sido
mostradas como seres secundários, fiéis servidoras de seus senhores, campos de
fertilidade ou sítio privilegiado de prazer masculino. Portanto: ora escravas e
concubinas, ora esposas fiéis, de bom grado submissas e rendidas. Personagens
de uma intocável história sagrada, criadas a partir de um imaginário
extremamente machista, que na realidade mais não faz do que iludir a real
importância das suas vidas, pois é nelas que tudo começa e que tudo acaba, como
mostram, aliás, estes textos de Deana Barroqueiro. Dando ela ao mesmo tempo a
ver os perigosos jogos secretos, o pacto com a natureza, a urdidura da inteligência
e da sensibilidade destas prisioneiras de um destino nefasto, divididas entre o
ardil, o rancor e o susto, o hábito e a determinação, a passividade e a
rebeldia.
Perversas e esquivas.
Mas sobretudo: ardentes.
E Deana Barroqueiro, através de uma escrita toda ela tecida por
sensualidades e cintilações audaciosamente eróticas, exibe com evidente alegria
essa ardência jubilosa, junto à qual a sexualidade dos homens parece
ridícula, grosseira e primária. Desejo grotesco se comparado com o desejo
matizado das mulheres, tomando corpo no recato das tendas, por entre os panos,
os mantos e os lençóis de linho bordados a ponto cheio. As sedas, as fitas
ocres e as rosas estriadas. As opalas mortíferas, os odores almiscarados, tingidos
com o perfume da tília e da madressilva, que chegavam do paraíso negado,
contrastando com a solidão do deserto.
Sexualidade nunca domesticável
Púrpura e carmim.
Insaciável.
Tal como na altura os homens a viam, assustando-se, sem dúvida desagradados. Desagrado esse que, segundo a invenção
inexcedível da ficcionista, teria feito Jacob perguntar-se, “se não seria uma
boa solução estender e excisão do sexo a todas as mulheres, para castrar de vez
a ávida carnalidade e insaciável fome de prazer que pareciam fazer parte da
índole das fêmeas, sem excepção, já que não resistiam a converter os
homens numa presa fácil e a escravizá-los aos seus apetites”.
Deste modo,
Deana Barroqueiro não só derruba o hipócrita e gravoso preconceito que tem
vindo a segundarizar a sexualidade feminina, apostando na sua frigidez, como
fica surda ao apelo masculino, recorrente ao longo de todo o Velho Testamento,
de se manter escondida a inacreditável fragilidade dos homens, não lhe dando
visibilidade. Desse modo, deixando de fora a sua iludida, ilusória fraqueza – a
dos membros e a do espírito –, sem história nem imagem. Mas, que o rútilo
efeito de espelho dos presentes textos, reflecte em múltiplas figurações
cristalizadas. É nelas, aliás, que se vem entroncar desta vez a ironia, que
agiliza – nunca suaviza – o tom, contribuindo até para acentuar a venalidade, a
que assistimos numa sucessão de vários acontecimentos e actos.
“O Romance da Bíblia” possui o riso que se acontece debaixo da palma da
mão entreaberta sobre a boca, mas igualmente o desfrute do gozo, ambiguamente
trocado, tomado, pelo gosto do outro, no tactear da língua. Um livro de
memórias ancestrais, que nos mostra o despertar da mortal e venenosa serpente
das seitas religiosas, do obscurantismo, do sexismo com a sua rancorosa face.
Mas, “O Romance da Bíblia” é ainda a beleza trabalhada, cinzelada, com um bom gosto literário inusitado, eu
diria mesmo raro, na ficção portuguesa. Histórias de onde se desprende um
erotismo quente, dolente, pleno de mistérios que jamais se desvendam,
jogando-se na devassa da roupa que, aliás, Ester nunca tira. No ardil. Um
erotismo de transparências nacaradas, um erotismo transbordante, que a si mesmo
impõe ganhar o traço feminino da criatividade. Assim como o encanto mágico das
mil e uma camélias do corpo da escrita.
Maria
Teresa Horta