Romance: Tentação da Serpente


Um olhar feminino sobre o Antigo Testamento.
Uma história de mulheres, para mulheres, de que os homens também gostam.

"Tentação da Serpente" é uma reedição de "O Romance da Bíblia", publicado em 2010.

01 abril 2015

Contos e Novos Contos Eróticos do Velho Testamento



crítica de Maria Teresa Horta                        

Quando um livro traz consigo a estrela da sorte, convocando os leitores e os críticos num mesmo abraço – laço, dado pelo entusiasmo e o elogio literário, como aconteceu a Deana Barroqueiro com “Contos Eróticos do Velho Testamento”, é muito difícil para o escritor conseguir esgueirar-se por entre as enredadas malhas do êxito, soltar-se desse peso que tolhe, para  voltar a partir como antes, de um modo tão solto, tão espontâneo e livre, quanto necessariamente inconsciente e louco, em direcção da aventura incomensurável da escrita. 
 Reexperimentando nos lábios o veneno da queda.
 Mas, também não é fácil para os leitores que amaram esse livro, e sobretudo para os críticos que nele apostaram, elegendo-o com a experiência da sua análise, voltarem a encontrar no trabalho seguinte, a satisfação experimentada no anterior. Quase nunca resistindo, preconceituosamente, à tentação de os comparar. Pior do que isso: exigindo serem mais surpreendidos do que já o foram.
Deste modo, os leitores e os críticos partem para este novo livro...
...desconfiando.
Tal como, confesso, aconteceu comigo, ao entrar na leitura de “Novos Contos Eróticos Do Velho Testamento”: temendo a repetição, a mera cópia, o cliché, a recorrência a um idêntico imaginário e abordagem ficcional. Ou seja, receava ir encontrar o uso, o truque, o abuso da efabulação, o embuste na roupagem dos temas, numa tentativa de retorno constante. Repegando, truncando, estragando a trama daquilo que nos primeiros contos surgia natural e liberto. Afinal, a proposta, a raiz de onde tematicamente partia Deana Barroqueiro para este segundo livro, era a mesma.  
Só que a escritora, como num passo de mágica, com um talento e uma maturidade invulgares, conseguiu contornar todas as dificuldades, e ressurgir com uma escrita ainda mais bela, fulgurante e criativa; sabendo no entanto como reencontrar as pontes, como manter a necessária ligação ao traço anterior:
Carnal.
Visceral.
Feminino.
Ousando a ousadia, mas também a contensão, usando o arrebatamento, mas também o conhecimento do que está a tratar, teimando no fulgor, mas também na sombra, adormentando-se no mel, mas despertando na dureza da crítica social. Refugiando-se nos lugares das mulheres, mas enfrentando o olhar das figuras masculinas que trata.
O livro de Deana Barroqueiro traz consigo a visão da mulher. Lúcido olhar, que ao longo dos séculos tem faltado à visitação deste universo da Bíblia: Velho Testamento moralista, repleto de anciãos preguiçosos, libidinosos e lascivos, de brutamontes ignorantes e violadores, convocados por um Deus irado frente à própria incompetência e à própria imagem, segundo a qual teria criado o homem, de quem afinal não gosta e castiga. E é precisamente no enredamento deste dilema, que se abrem as páginas do primeiro dos dezanove textos que, fragmentariamente, irão formar um todo literário uno: falando de Noé e de Jacob, de Isaac e de Sansão, de Asmodeu e dos circuncisos, de Labão e de Abraão, arrancando-os do seu pedestal de heróis divinos, com uma habilidosa crueldade implacável.
Aqui terminam as idealizações masculinas, os embustes. E começamos a examinar de forma diferente, atenta e precisa, as figuras femininas, uma por uma: Sara e Ester, Lia e Raquel, Jael e Pesechet, Dalila e Susana, que nos tinham sido mostradas como seres secundários, fiéis servidoras de seus senhores, campos de fertilidade ou sítio privilegiado de prazer masculino. Portanto: ora escravas e concubinas, ora esposas fiéis, de bom grado submissas e rendidas. Personagens de uma intocável história sagrada, criadas a partir de um imaginário extremamente machista, que na realidade mais não faz do que iludir a real importância das suas vidas, pois é nelas que tudo começa e que tudo acaba, como mostram, aliás, estes textos de Deana Barroqueiro. Dando ela ao mesmo tempo a ver os perigosos jogos secretos, o pacto com a natureza, a urdidura da inteligência e da sensibilidade destas prisioneiras de um destino nefasto, divididas entre o ardil, o rancor e o susto, o hábito e a determinação, a passividade e a rebeldia.
Perversas e esquivas.
Mas sobretudo: ardentes.
E Deana Barroqueiro, através de uma escrita toda ela tecida por sensualidades e cintilações audaciosamente eróticas, exibe com evidente alegria essa ardência jubilosa, junto à qual a sexualidade dos homens parece ridícula, grosseira e primária. Desejo grotesco se comparado com o desejo matizado das mulheres, tomando corpo no recato das tendas, por entre os panos, os mantos e os lençóis de linho bordados a ponto cheio. As sedas, as fitas ocres e as rosas estriadas. As opalas mortíferas, os odores almiscarados, tingidos com o perfume da tília e da madressilva, que chegavam do paraíso negado, contrastando com a solidão do deserto.
Sexualidade nunca domesticável
Púrpura e carmim.
Insaciável.
Tal como na altura os homens a viam, assustando-se, sem dúvida desagradados.  Desagrado esse que, segundo a invenção inexcedível da ficcionista, teria feito Jacob perguntar-se, “se não seria uma boa solução estender e excisão do sexo a todas as mulheres, para castrar de vez a ávida carnalidade e insaciável fome de prazer que pareciam fazer parte da índole das fêmeas, sem excepção, já que não resistiam a converter os homens numa presa fácil e a escravizá-los aos seus apetites”.
Deste modo, Deana Barroqueiro não só derruba o hipócrita e gravoso preconceito que tem vindo a segundarizar a sexualidade feminina, apostando na sua frigidez, como fica surda ao apelo masculino, recorrente ao longo de todo o Velho Testamento, de se manter escondida a inacreditável fragilidade dos homens, não lhe dando visibilidade. Desse modo, deixando de fora a sua iludida, ilusória fraqueza – a dos membros e a do espírito –, sem história nem imagem. Mas, que o rútilo efeito de espelho dos presentes textos, reflecte em múltiplas figurações cristalizadas. É nelas, aliás, que se vem entroncar desta vez a ironia, que agiliza – nunca suaviza – o tom, contribuindo até para acentuar a venalidade, a que assistimos numa sucessão de vários acontecimentos e actos.
“O Romance da Bíblia” possui o riso que se acontece debaixo da palma da mão entreaberta sobre a boca, mas igualmente o desfrute do gozo, ambiguamente trocado, tomado, pelo gosto do outro, no tactear da língua. Um livro de memórias ancestrais, que nos mostra o despertar da mortal e venenosa serpente das seitas religiosas, do obscurantismo, do sexismo com a sua rancorosa face. Mas, “O Romance da Bíblia” é ainda a beleza trabalhada, cinzelada, com um bom gosto literário inusitado, eu diria mesmo raro, na ficção portuguesa. Histórias de onde se desprende um erotismo quente, dolente, pleno de mistérios que jamais se desvendam, jogando-se na devassa da roupa que, aliás, Ester nunca tira. No ardil. Um erotismo de transparências nacaradas, um erotismo transbordante, que a si mesmo impõe ganhar o traço feminino da criatividade. Assim como o encanto mágico das mil e uma camélias do corpo da escrita.  
                                                                                   Maria Teresa Horta   
                                                                                 

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