Paul Bhatti, activista pelo diálogo
inter-religioso no Paquistão, denuncia a existência no Paquistão de uma
ideologia extremista que nada tem a ver com o islão. As desigualdades
sociais são apontadas como o problema cuja solução é essencial para
acabar com a discriminação da minoria cristã naquele país.
Bhatti formou-se para salvar vidas, mas a prática clínica deu lugar a uma luta pela sobrevivência da minoria cristã do Paquistão, que o levou ao simbólico cargo de ministro da Harmonia Nacional no governo de Asif Ali Zardari. Paul sucedeu nessa missão ao seu irmão Shabazz, assassinado em Março de 2011, quando era também ministro das minorias num país de esmagadora maioria muçulmana.
Antes de discursar no Meeting Lisboa, iniciativa organizada por universitários ligados ao movimento católico Comunhão e Libertação, Paul Bhatti aceitou falar sobre a sua luta. Contra os extremismos, que justifica com desigualdades sociais. Contra o medo de ser morto, que associa a um recuo nessa mesma luta.
Como descreve actual situação da minoria cristã no Paquistão?
O meu país está a passar um momento muito difícil da sua história. Temos instabilidade política, económica e social. Nunca tivemos, até agora, uma situação política estável. Tivemos, por várias vezes, leis marciais, duas guerras com a Índia, uma ditadura militar;, temos agora três milhões de refugiados nas fronteiras. Tudo isso mina a estabilidade política e social do Paquistão.
Muitas forças e ideologias extremistas cresceram neste país. E desbalizaram-no e, infelizmente, às minorias religiosas. Em particular, os cristãos, que pertencem à parte mais pobre da sociedade. Quando um país está sob ameaça e instável, em tempos de crise, é claro que os pobres sofrem mais do que os outros. Neste contexto, muitas ideologias extremistas apenas criam divisões e ódios entre pessoas de diferentes credos. Alguns consideram que a comunidade cristã no Paquistão é a representante do mundo ocidental, em especial, do mundo cristão. Por isso, como vingança para com a comunidade internacional, especialmente com os Estados Unidos e a Europa, tentam atingir a comunidade cristã do Paquistão. Além disso, há muitas pessoas que acreditam, literalmente, que os cristãos são os seus inimigos. Portanto, os actos de violência contra os cristãos e outras minorias religiosas são muito comuns.
Isso é muito diferente do que encontrávamos em 2001, após o 11 de Setembro. Havia pressão, mas não este tipo de violência contra os cristãos. A ideia de um ministério para as minorias religiosas deveria fornecer algum enquadramento diferente. Isso tudo desapareceu?
Nunca houve, propriamente, um ministério das minorias religiosas. Havia uma espécie de ministro estadual com esta pasta, no âmbito do Ministério das Religiões. Quando o meu irmão se tornou ministro federal, então criou-se um ministério federal, em Islamabad. Mas, infelizmente, foi feita uma emenda na Constituição do Paquistão a dar mais autonomia aos ministérios provinciais. O ministério das minorias passou para o âmbito das províncias, pouco depois de seu estar no ministério. Então, fiz um apelo ao primeiro-ministro e ao Presidente do Paquistão para a criação de uma plataforma das minorias religiosas, para promover a coexistência pacifica de pessoas de diferentes credos. Esse apelo foi aceite de forma muito simpática e criámos o novo ministério da Harmonia Nacional, que existe, agora, no contexto do Ministério das Religiões.
A discriminação dos cristãos é um problema que se resolve com leis ou com outras ferramentas na sociedade?
Há duas coisas que constituem o problema de base: a pobreza e a iliteracia. A pobreza, porque essas pessoas pertencem à classe mais baixa e marginalizada da sociedade e isso cria vítimas fáceis. Em parte, há a discriminação religiosa e, por outro lado, há um problema de castas. Os cristãos fazem o trabalho mais sujo, mais pobre e mais humilde. Não são considerados valiosos para o país.
Mas o Paquistão não foi criado com o sistema de castas da Índia?
Não, mas a Índia e o Paquistão têm a mesma tradição. O sistema de castas existe há muitos anos na Índia. A ideia acaba por ser a mesma, com o correr dos tempos. Em países pobres, existe a discriminação contra as classes mais baixas. À margem dessa questão, há um grupo que quer impor uma filosofia radical no Paquistão e vê as minorias religiosas como uma ameaça.
Você disse que encontrou, em 2001, uma situação melhor do que a actual, mesmo com a pressão sobre os cristãos. Mas há muitos anos, mesmo antes da sua viagem ao Paquistão, o sistema escolar estava nas mãos dos cristãos, até mesmo o sistema de saúde. A maioria das pessoas - a “nata da sociedade”, incluindo o primeiro-ministro e o presidente - estudou em escolas cristãs. Éramos a minoria, mas éramos respeitados. A ideologia - não dizendo que tinha base cristã - era, contudo, muito livre.
Isso mudou em 15 anos?
Isso mudou muitas vezes, porque perdemos muitas escolas. Apareceram muitas 'madrassas' [escolas islâmicas] e surgiram muitas outras coisas. Além disso, há agendas políticas, contra a América, grupos que queriam atacar e que quiseram destruir as Torres Gémeas. E pessoas que expressam ódios contra os países ocidentais. São pessoas que vêem os cristãos como inimigos. O que é que se pode fazer, para além de se denunciar, a nível internacional, em vários fóruns, que os cristãos deviam ser salvos, deviam ser protegidos? Isso está tudo bem, mas, à margem disso, a raiz do problema está na educação e na pobreza. Se eliminarmos a pobreza, se dermos mais oportunidades de educação aos cristãos, eles tornam-se alguém com mais valor para a sociedade. Eles não são considerados valiosos para o país. Se não receberem educação, se não trabalharem, os cristãos vão continuar a ser desvalorizados.
Shahbaz Bhatti, irmão de Paul, foi assassinado por defender a abolição da lei da blasfémia. Paul dá continuidade ao seu trabalho. Foto: DR
A legislação antiblasfémia pretende reprimir a ofensa às religiões. No papel, claro, porque a prática parece bem diferente. Será este o caso de uma lei que deve ser liminarmente rejeitada ou contém alguma semente, uma base que se possa trabalhar para a protecção de todas as religiões, colocando o diálogo acima de tudo?
Há várias formas de o conseguir. O mais importante é parar com essa espécie de lavagem cerebral que está a ser feita às crianças, que são ensinadas a transmitir mensagens de ódio contra outras religiões. Por exemplo, se a lei for agora retirada, mas não for travada a criação ou o crescimento dessa ideologia, não se consegue parar nada. Até agora, foram poucas ou quase nenhumas as pessoas que foram acusadas de blasfémia e mortas pela força da lei. Foram pessoas que mataram pessoas. Em primeiro lugar, temos de parar com essa ideologia que é tão perigosa, violenta e está a ameaçar toda a sociedade. Se não pararmos isso, mesmo que se altere a lei, isso não será resolvido.
E este é apenas um problema do Paquistão? A sua descrição vai ao encontro de outros países onde os cristãos são perseguidos...
Talibãs, Al-Qaeda, Boko Haram, Estado Islâmico. São tudo diferentes caras da mesma ideologia. Se este tipo de problema for ultrapassado no Paquistão, vai tornar-se num modelo a seguir para outros países. O Paquistão é um poder nuclear, tem tradições religiosas muito fortes. E, ao mesmo tempo, tem uma tradição e uma história cultural muito forte, tal como a Índia. Tivemos filósofos, como Mahatma Puhle e Mahatma Ghandi, provenientes dessa cultura, que transmitiam uma mensagem de paz e amor. Essa terra pertence a uma cultura tão harmoniosa que, se ultrapassarmos isto e ela se tornar pacífica, acho que os outros não vão ter dificuldades para, automaticamente, seguirem esse caminho.
Parece estar optimista. Porquê? Porque há um poder na "contaminação" entre diversos países? O Presidente afegão dizia-se, esta semana, preocupado com a entrada do Estado Islâmico no seu país. Juntando-se aos talibã, é um cenário de pesadelo para os cristãos...Isso vai ao encontro da minha tese. O Estado Islâmico vai ter com os talibã porque partilham a mesma ideologia e de alguma forma apoiam-se mutuamente. Os talibã são as pessoas mais fortes e resistentes do mundo. Lutaram contra os russos, os britânicos, muitos outros invasores. Cresceram neste tipo de ideologia.
Duas igrejas foram atacadas em Lahore, no Paquistão. Mas houve também uma resposta...
Dos cristãos...
Cem cristãos foram detidos na sequência de protestos e de um linchamento de suspeitos. Como que vê esta resposta violenta dos cristãos?
Em primeiro lugar, condenamos duramente este tipo de violência contra as igrejas e ficámos muito sentidos, com uma dor muito profunda face a este acto de violência. Mas nunca esperámos que estes dois muçulmanos fossem imolados. Foram mortos e queimados. Esta é a ideologia que condenamos. Não podemos fazer o mesmo que os outros estão a fazer. Já dei o meu testemunho, em várias estações de televisão e jornais do Paquistão. Não queremos este tipo de resistência por parte dos cristãos. É claro que não aceitamos que alguém ataque as nossas igrejas, as nossas orações e mate a nossa gente.
Foi um acto de desespero?
Mas até em momentos de desespero, por exemplo, se sou uma pessoa que defende os valores humanos e que está a proteger as pessoas, eu não vou começar a matar outras pessoas. As minhas convicções tornam-se fracas. Não posso. Sou um médico. Basicamente, o meu papel é salvar pessoas. Não posso começar a matar pessoas. Este acto é absolutamente condenável, não tem justificação.
Como se dialoga com alguém que nos oprime?
Isso é interessante. Não tenho que dialogar com pessoas que me oprimem, que estão convencidas que têm que matar e morrer. Essas pessoas sofreram uma lavagem cerebral. Tenho que dialogar com outras pessoas, que têm poder e que acreditam genuinamente que somos os seus inimigos. Tenho que dialogar com o Governo, que tem poder para parar com este tipo de ideologias, em que as pessoas são vítimas de lavagens cerebrais e que crescem com estas ideologias. Temos que falar com líderes religiosos, que estão convencidos de que os cristãos são os seus inimigos. Quando fui ministro federal da Harmonia Nacional, tive muitos diálogos com líderes religiosos muçulmanos com muito bons resultados. O mais histórico dos resultados diz respeito a uma rapariga que foi acusada de blasfémia e muita gente queria atacar a comunidade cristã. Nessa altura, fiz um apelo aos lideres religiosos muçulmanos para que ajudassem. Se ela tivesse cometido blasfémia, o caso deveria seguir pelos canais judiciais. Mas se nada fez, que mal fizeram os cristãos? Tivemos um diálogo, eles acreditaram em mim, apoiaram-me. E, no fim, ela foi libertada. E a pessoa que falsamente a acusou foi levada à justiça.
Tem o apoio de muçulmanos moderados ou que alinham com os cristãos?
Claro. Tivemos o governador do Punjab, que apoiou a causa de Asia Bibi [paquistanesa condenada à pena de morte por alegada blasfémia] e foi assassinado por isso. Alguns advogados que defenderam cristãos acusados de blasfémia foram mortos. Tenho amigos muçulmanos que me defendem. Meu amigo, não existem os "muçulmanos moderados versus muçulmanos extremistas". Os muçulmanos ou o são ou não são. Por norma, aprendi que o islão é uma religião muito boa no que concerne aos valores humanos. A questão é a forma como eles interpretam a sua religião, como transmitem estes valores aos outros. Se tiverem uma agenda pessoal, alguns pensarão que se deve constituir um ataque ao mundo ocidental. Eles financiam e patrocinam algumas escolas onde estes alunos são ensinados por uma ideologia extremista. Não há um islão extremista. É a ideologia que está por trás que patrocina este extremismo. É isso que tem que ser atacado.
Como é que ultrapassa o medo de ser morto, como o seu irmão?
O medo existe, está lá. Somos seres humanos, sabe, somos pessoas. Se disser que não tenho medo, estarei a mentir. Temos medo. Mas, por outro lado, se uma pessoa vir qual é a sua força e qual é a sua luta, tem de enfrentar esse medo. A partir daí, isso torna-se secundário. Se começo a recuar, estou a acabar com a minha luta. Por isso, tenho de ultrapassar o medo e ser cuidadoso. Não quero ser morto só porque, sendo morto, a minha luta acaba. Mas, ao mesmo tempo, sei que a minha hora está destinada e que, a uma determinada altura, temos que morrer. Por isso, temos de tomar medidas razoáveis de precaução. Eu continuo a minha luta e tomo medidas para me proteger. Mas, se acontecer na segunda-feira, acontece. É assim.
Bhatti formou-se para salvar vidas, mas a prática clínica deu lugar a uma luta pela sobrevivência da minoria cristã do Paquistão, que o levou ao simbólico cargo de ministro da Harmonia Nacional no governo de Asif Ali Zardari. Paul sucedeu nessa missão ao seu irmão Shabazz, assassinado em Março de 2011, quando era também ministro das minorias num país de esmagadora maioria muçulmana.
Antes de discursar no Meeting Lisboa, iniciativa organizada por universitários ligados ao movimento católico Comunhão e Libertação, Paul Bhatti aceitou falar sobre a sua luta. Contra os extremismos, que justifica com desigualdades sociais. Contra o medo de ser morto, que associa a um recuo nessa mesma luta.
Como descreve actual situação da minoria cristã no Paquistão?
O meu país está a passar um momento muito difícil da sua história. Temos instabilidade política, económica e social. Nunca tivemos, até agora, uma situação política estável. Tivemos, por várias vezes, leis marciais, duas guerras com a Índia, uma ditadura militar;, temos agora três milhões de refugiados nas fronteiras. Tudo isso mina a estabilidade política e social do Paquistão.
Muitas forças e ideologias extremistas cresceram neste país. E desbalizaram-no e, infelizmente, às minorias religiosas. Em particular, os cristãos, que pertencem à parte mais pobre da sociedade. Quando um país está sob ameaça e instável, em tempos de crise, é claro que os pobres sofrem mais do que os outros. Neste contexto, muitas ideologias extremistas apenas criam divisões e ódios entre pessoas de diferentes credos. Alguns consideram que a comunidade cristã no Paquistão é a representante do mundo ocidental, em especial, do mundo cristão. Por isso, como vingança para com a comunidade internacional, especialmente com os Estados Unidos e a Europa, tentam atingir a comunidade cristã do Paquistão. Além disso, há muitas pessoas que acreditam, literalmente, que os cristãos são os seus inimigos. Portanto, os actos de violência contra os cristãos e outras minorias religiosas são muito comuns.
Isso é muito diferente do que encontrávamos em 2001, após o 11 de Setembro. Havia pressão, mas não este tipo de violência contra os cristãos. A ideia de um ministério para as minorias religiosas deveria fornecer algum enquadramento diferente. Isso tudo desapareceu?
Nunca houve, propriamente, um ministério das minorias religiosas. Havia uma espécie de ministro estadual com esta pasta, no âmbito do Ministério das Religiões. Quando o meu irmão se tornou ministro federal, então criou-se um ministério federal, em Islamabad. Mas, infelizmente, foi feita uma emenda na Constituição do Paquistão a dar mais autonomia aos ministérios provinciais. O ministério das minorias passou para o âmbito das províncias, pouco depois de seu estar no ministério. Então, fiz um apelo ao primeiro-ministro e ao Presidente do Paquistão para a criação de uma plataforma das minorias religiosas, para promover a coexistência pacifica de pessoas de diferentes credos. Esse apelo foi aceite de forma muito simpática e criámos o novo ministério da Harmonia Nacional, que existe, agora, no contexto do Ministério das Religiões.
A discriminação dos cristãos é um problema que se resolve com leis ou com outras ferramentas na sociedade?
Há duas coisas que constituem o problema de base: a pobreza e a iliteracia. A pobreza, porque essas pessoas pertencem à classe mais baixa e marginalizada da sociedade e isso cria vítimas fáceis. Em parte, há a discriminação religiosa e, por outro lado, há um problema de castas. Os cristãos fazem o trabalho mais sujo, mais pobre e mais humilde. Não são considerados valiosos para o país.
Mas o Paquistão não foi criado com o sistema de castas da Índia?
Não, mas a Índia e o Paquistão têm a mesma tradição. O sistema de castas existe há muitos anos na Índia. A ideia acaba por ser a mesma, com o correr dos tempos. Em países pobres, existe a discriminação contra as classes mais baixas. À margem dessa questão, há um grupo que quer impor uma filosofia radical no Paquistão e vê as minorias religiosas como uma ameaça.
Você disse que encontrou, em 2001, uma situação melhor do que a actual, mesmo com a pressão sobre os cristãos. Mas há muitos anos, mesmo antes da sua viagem ao Paquistão, o sistema escolar estava nas mãos dos cristãos, até mesmo o sistema de saúde. A maioria das pessoas - a “nata da sociedade”, incluindo o primeiro-ministro e o presidente - estudou em escolas cristãs. Éramos a minoria, mas éramos respeitados. A ideologia - não dizendo que tinha base cristã - era, contudo, muito livre.
Isso mudou em 15 anos?
Isso mudou muitas vezes, porque perdemos muitas escolas. Apareceram muitas 'madrassas' [escolas islâmicas] e surgiram muitas outras coisas. Além disso, há agendas políticas, contra a América, grupos que queriam atacar e que quiseram destruir as Torres Gémeas. E pessoas que expressam ódios contra os países ocidentais. São pessoas que vêem os cristãos como inimigos. O que é que se pode fazer, para além de se denunciar, a nível internacional, em vários fóruns, que os cristãos deviam ser salvos, deviam ser protegidos? Isso está tudo bem, mas, à margem disso, a raiz do problema está na educação e na pobreza. Se eliminarmos a pobreza, se dermos mais oportunidades de educação aos cristãos, eles tornam-se alguém com mais valor para a sociedade. Eles não são considerados valiosos para o país. Se não receberem educação, se não trabalharem, os cristãos vão continuar a ser desvalorizados.
Shahbaz Bhatti, irmão de Paul, foi assassinado por defender a abolição da lei da blasfémia. Paul dá continuidade ao seu trabalho. Foto: DR
A legislação antiblasfémia pretende reprimir a ofensa às religiões. No papel, claro, porque a prática parece bem diferente. Será este o caso de uma lei que deve ser liminarmente rejeitada ou contém alguma semente, uma base que se possa trabalhar para a protecção de todas as religiões, colocando o diálogo acima de tudo?
Há várias formas de o conseguir. O mais importante é parar com essa espécie de lavagem cerebral que está a ser feita às crianças, que são ensinadas a transmitir mensagens de ódio contra outras religiões. Por exemplo, se a lei for agora retirada, mas não for travada a criação ou o crescimento dessa ideologia, não se consegue parar nada. Até agora, foram poucas ou quase nenhumas as pessoas que foram acusadas de blasfémia e mortas pela força da lei. Foram pessoas que mataram pessoas. Em primeiro lugar, temos de parar com essa ideologia que é tão perigosa, violenta e está a ameaçar toda a sociedade. Se não pararmos isso, mesmo que se altere a lei, isso não será resolvido.
E este é apenas um problema do Paquistão? A sua descrição vai ao encontro de outros países onde os cristãos são perseguidos...
Talibãs, Al-Qaeda, Boko Haram, Estado Islâmico. São tudo diferentes caras da mesma ideologia. Se este tipo de problema for ultrapassado no Paquistão, vai tornar-se num modelo a seguir para outros países. O Paquistão é um poder nuclear, tem tradições religiosas muito fortes. E, ao mesmo tempo, tem uma tradição e uma história cultural muito forte, tal como a Índia. Tivemos filósofos, como Mahatma Puhle e Mahatma Ghandi, provenientes dessa cultura, que transmitiam uma mensagem de paz e amor. Essa terra pertence a uma cultura tão harmoniosa que, se ultrapassarmos isto e ela se tornar pacífica, acho que os outros não vão ter dificuldades para, automaticamente, seguirem esse caminho.
Parece estar optimista. Porquê? Porque há um poder na "contaminação" entre diversos países? O Presidente afegão dizia-se, esta semana, preocupado com a entrada do Estado Islâmico no seu país. Juntando-se aos talibã, é um cenário de pesadelo para os cristãos...Isso vai ao encontro da minha tese. O Estado Islâmico vai ter com os talibã porque partilham a mesma ideologia e de alguma forma apoiam-se mutuamente. Os talibã são as pessoas mais fortes e resistentes do mundo. Lutaram contra os russos, os britânicos, muitos outros invasores. Cresceram neste tipo de ideologia.
Duas igrejas foram atacadas em Lahore, no Paquistão. Mas houve também uma resposta...
Dos cristãos...
Cem cristãos foram detidos na sequência de protestos e de um linchamento de suspeitos. Como que vê esta resposta violenta dos cristãos?
Em primeiro lugar, condenamos duramente este tipo de violência contra as igrejas e ficámos muito sentidos, com uma dor muito profunda face a este acto de violência. Mas nunca esperámos que estes dois muçulmanos fossem imolados. Foram mortos e queimados. Esta é a ideologia que condenamos. Não podemos fazer o mesmo que os outros estão a fazer. Já dei o meu testemunho, em várias estações de televisão e jornais do Paquistão. Não queremos este tipo de resistência por parte dos cristãos. É claro que não aceitamos que alguém ataque as nossas igrejas, as nossas orações e mate a nossa gente.
Foi um acto de desespero?
Mas até em momentos de desespero, por exemplo, se sou uma pessoa que defende os valores humanos e que está a proteger as pessoas, eu não vou começar a matar outras pessoas. As minhas convicções tornam-se fracas. Não posso. Sou um médico. Basicamente, o meu papel é salvar pessoas. Não posso começar a matar pessoas. Este acto é absolutamente condenável, não tem justificação.
Como se dialoga com alguém que nos oprime?
Isso é interessante. Não tenho que dialogar com pessoas que me oprimem, que estão convencidas que têm que matar e morrer. Essas pessoas sofreram uma lavagem cerebral. Tenho que dialogar com outras pessoas, que têm poder e que acreditam genuinamente que somos os seus inimigos. Tenho que dialogar com o Governo, que tem poder para parar com este tipo de ideologias, em que as pessoas são vítimas de lavagens cerebrais e que crescem com estas ideologias. Temos que falar com líderes religiosos, que estão convencidos de que os cristãos são os seus inimigos. Quando fui ministro federal da Harmonia Nacional, tive muitos diálogos com líderes religiosos muçulmanos com muito bons resultados. O mais histórico dos resultados diz respeito a uma rapariga que foi acusada de blasfémia e muita gente queria atacar a comunidade cristã. Nessa altura, fiz um apelo aos lideres religiosos muçulmanos para que ajudassem. Se ela tivesse cometido blasfémia, o caso deveria seguir pelos canais judiciais. Mas se nada fez, que mal fizeram os cristãos? Tivemos um diálogo, eles acreditaram em mim, apoiaram-me. E, no fim, ela foi libertada. E a pessoa que falsamente a acusou foi levada à justiça.
Tem o apoio de muçulmanos moderados ou que alinham com os cristãos?
Claro. Tivemos o governador do Punjab, que apoiou a causa de Asia Bibi [paquistanesa condenada à pena de morte por alegada blasfémia] e foi assassinado por isso. Alguns advogados que defenderam cristãos acusados de blasfémia foram mortos. Tenho amigos muçulmanos que me defendem. Meu amigo, não existem os "muçulmanos moderados versus muçulmanos extremistas". Os muçulmanos ou o são ou não são. Por norma, aprendi que o islão é uma religião muito boa no que concerne aos valores humanos. A questão é a forma como eles interpretam a sua religião, como transmitem estes valores aos outros. Se tiverem uma agenda pessoal, alguns pensarão que se deve constituir um ataque ao mundo ocidental. Eles financiam e patrocinam algumas escolas onde estes alunos são ensinados por uma ideologia extremista. Não há um islão extremista. É a ideologia que está por trás que patrocina este extremismo. É isso que tem que ser atacado.
Como é que ultrapassa o medo de ser morto, como o seu irmão?
O medo existe, está lá. Somos seres humanos, sabe, somos pessoas. Se disser que não tenho medo, estarei a mentir. Temos medo. Mas, por outro lado, se uma pessoa vir qual é a sua força e qual é a sua luta, tem de enfrentar esse medo. A partir daí, isso torna-se secundário. Se começo a recuar, estou a acabar com a minha luta. Por isso, tenho de ultrapassar o medo e ser cuidadoso. Não quero ser morto só porque, sendo morto, a minha luta acaba. Mas, ao mesmo tempo, sei que a minha hora está destinada e que, a uma determinada altura, temos que morrer. Por isso, temos de tomar medidas razoáveis de precaução. Eu continuo a minha luta e tomo medidas para me proteger. Mas, se acontecer na segunda-feira, acontece. É assim.
Sem comentários:
Enviar um comentário