Romance: Tentação da Serpente


Um olhar feminino sobre o Antigo Testamento.
Uma história de mulheres, para mulheres, de que os homens também gostam.

"Tentação da Serpente" é uma reedição de "O Romance da Bíblia", publicado em 2010.

18 maio 2010

Aos meus leitores

O Romance da Bíblia é uma reedição revista, depurada e reorganizada, das minhas duas obras preferidas – os Contos Eróticos do Velho Testamento e os Novos Contos Eróticos do Velho Testamento –, publicadas em 2003/2004 e que, desde muito cedo, deixaram de estar acessíveis aos leitores. A Editora Ésquilo permitiu-me concretizar o desejo de revisitar e reformular essa minha saga das Mulheres do Antigo Testamento, dando-lhe a forma de um romance (implícita, todavia, na estrutura aparentemente fragmentária das duas colectâneas de contos).

A razão que me levou a escrever sobre um tema tão delicado, capaz de ferir ainda algumas susceptibilidades, em muitos quadrantes deste nosso mundo, foi talvez a percepção de que as lendas, parábolas e histórias exemplares do Antigo Testamento, com as sua personagens sacralizadas e, durante milénios, intocáveis, nunca tinham sido olhadas e escrutinadas do ponto de vista feminino e focando particularmente a condição da mulher. Era um desafio irresistível para uma amante de causas perdidas.
Reli os livros do Antigo Testamento de fio a pavio e senti, desde logo, uma vontade imensa de reescrever essas histórias, incarnando um cronista desse tempo, céptico porém capaz de aceitar com igual complacência as crenças em Baal, Osíris, Marduk ou Jahweh, interessado sobretudo em descrever os espaços geográficos, ambientais, sociais e étnicos.

Pesquisei e recolhi inúmeros testemunhos que chegaram até nós na escrita cuneiforme de Ur e de Ninive ou na hieroglífica do Egipto, dessacralizando os mitos e procurando uma explicação mais real e prosaica para os acontecimentos, de acordo com essa sociedade de pastores nómadas que formaram as tribos de Judá e Israel.
Pretendi – como já o disse outrora e tenho feito com os meus romances sobre o período dos Descobrimentos – recriar a vida desses homens e mulheres, forçosamente pouco cultos e muito supersticiosos, a lutarem ferozmente pelo seu lugar num mundo bárbaro de guerras e fomes, recorrendo a todos os meios que lhes sugeriam a esperteza e o engenho, para assegurarem a própria sobrevivência, mesmo se isso implicasse a destruição do seu próximo.

Além da pesquisa em obras de História da Antiguidade, em relatos de escavações e descobertas arqueológicas e outras fontes documentais, segui em muitos casos as notas, explicações e comentários minuciosos dos missionários Capuchinhos, estudiosos incansáveis para uma interpretação circunstanciada dos livros sagrados, que frequentemente apresentam uma explicação científica para os supostos fenómenos milagrosos ou apontam as ligações e analogias entre os textos da Bíblia, escritos muitos séculos depois de circularem na tradição oral, e as fontes históricas onde foi beber essa tradição, como o Código de Hammurabi ou as placas de argila da biblioteca de Assurbanípal, com os mitos e lendas da Mesopotâmia, como o Dilúvio provocado pela subida das águas dos rios Tigre e Eufrates e a destruição de Ur.

Li os textos da Bíblia não com a inocência maravilhada da juventude, mas com o distanciamento de mais de meio século de existência. Li-os com a curiosidade do estudioso (os históricos e os dos provérbios, mais objectivos ou práticos), com o prazer do poeta (os dos cânticos e salmos), com o humor zombeteiro do céptico (os fantasiosos e absurdos, de pura lenda), com a repugnância de um humanista face ao atropelo dos valores éticos e morais (os episódios crudelíssimos das mortes sem sentido ou do uso e abuso degradantes da mulher).

Por outro lado, não era possível ignorar, mesmo que o quisesse fazer, a componente erótica fortíssima que percorre, de modo gritante, persistente, direi mesmo obsessivo, todo o livro sagrado, transformando as suas pequenas histórias, cujos autores pretendiam que fossem de bons exemplos, em crónicas deliciosamente impudicas, terrivelmente escandalosas e, por vezes mesmo, inacreditavelmente depravadas e imorais, por isso mesmo, pulsantes de vida.

O meu maior desafio, enquanto mulher e escritora, foi a utilização dessa componente erótica como elo de ligação dos capítulos/episódios deste romance no feminino, com recurso a uma linguagem subtil, sensual e poética, ainda que, por vezes, assaz violenta devido à própria matéria das narrativas originais. Foi tarefa árdua pôr em palavras, com o necessário distanciamento, a história das mulheres do Antigo Testamento, tão remotas e contudo tão próximas de nós. Uma saga de terrível sofrimento e luta constante, com as armas do seu próprio engenho e arte, pela sua dignidade e por um lugar na sociedade, a par dos homens.

Procurei mostrar o percurso dessas nossas antepassadas, através de sucessivas gerações, num mundo em que as descendentes de Eva eram consideradas pelos homens como mercadoria e inferiores aos animais, conceito que perdura ainda hoje, perpetuado por determinadas interpretações fundamentalistas dos livros ditos sagrados, em nome de uma “verdade” religiosa ou ideológica que nenhum Deus, bom e justo, poderia alguma vez sancionar ou sequer tolerar.

Deana Barroqueiro

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